A MÁCULA DO PODER NO BDSM

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E aí meu querido leitor, tudo bem? Na semana passada todos nós da redação conversamos sobre o ego no BDSM. O Dr. Psi fez suas colocações através do texto “Ego, Arrego e BDSM”, a Sra Storm no texto “BDSM, palco para egos frágeis”, e eu tive a oportunidade de encerrar esse tema com o texto  “A necessidade de validação no BDSM”. Você leu, certo? Pois bem, iremos continuar desse ponto, mas partindo de um outro prisma: O PODER. 

Sobre esse tema, o Dr. Psi começou escrevendo  “BDSM x Poder”, a Sra Storm continuou e agora chegou a minha vez, me acompanha? 

O jogo lúdico

Falar de BDSM é começar uma conversa com o imaginário, com o “faz de conta” de nossas mentes. Boa parte das práticas giram em torno do poder que desejamos que cada interação tenha.

O caráter lúdico está presente em cerca de 90% das práticas desenvolvidas dentro do BDSM, sendo o restante referente a dinâmicas fisiológicas. Seja utilizando peças de couro, como botas, jaquetas, chicotes, seja assumindo o papel de um animal ou algum outro personagem, estamos performando dentro de um universo imaginativo inserido na cultura da qual fazemos parte. Dessa forma, percebe-se que o jogo lúdico é o que sustenta as práticas do BDSM.

A história de vida da Hannah Cullwick com o Arthur Munby reforçam essa visão. Por mais que eles fossem casados, Arthur continuava pagando o salário de empregada para Hannah, pois ela se negou a fazer as atividades domésticas de forma gratuita apenas porque se casaram e, ainda sim, Hannah o chamava de massa (mestre), e Arthur se excitava sexualmente sempre que via Hannah suja, enquanto Hannah só sentia prazer sexual quando fingia não ser quem era, sendo uma escrava, ou um homem, ou um animal, ou uma criança. O prazer de interpretar personagens diferentes durante o ato sexual era o combustível necessário para que ela encontrasse o orgasmo. Os dois detestavam ser vistos em público como “Senhor e escrava”, pois essa condição só estaria dentro da vida íntima do casal e suas respectivas necessidades sexuais.

Vale lembrar que estou mencionando um casal inglês que se conheceu em 1835, muito antes de qualquer estudo científico sobre essas necessidades sexuais. 

Os dois escreviam diários particulares relatando suas experiências. Você pode acompanhar os detalhes dessa relação em diversos estudos e compilados, mas a Anne McClintock dedicou dois capítulos do livro Couro Imperial para apresentar as dinâmicas SM através da análise cotidiana do Arthur com a Hannah e vice e versa, partindo da leitura página a página do diário dos dois. Anne reforça e conclui que o SM se constrói através do imaginário dos participantes e, sendo a quebra da moral o grande combustível dessa sexualidade.

Segundo Huizinga, em sua obra Homo Ludens, o jogo lúdico tem um papel muito importante no desenvolvimento do ser humano, pois permite ao indivíduo desenvolver sua criatividade e suas capacidades de criar e transformar o mundo à sua volta.

No BDSM alguns elementos incorporados nas práticas, tais como os protocolos, a liturgia, as nomenclaturas, os dresscodes, ou seja, alguns ritos e construções, são utilizados exatamente para criar essa borda entre o jogo da realidade. 

Quando vamos jogar ou participar de uma “play”, colocamos uma máscara e assumimos personas diferentes da que somos em situações da vida cotidiana, o que é essencial para não confundirmos as cenas criadas pela nossa imaginação para satisfazer nosso prazer sexual, com aquilo que é a nossa vida real, com nossos valores morais e éticos.

Assim, quando duas (ou mais) pessoas sentem o interesse em jogar juntos, o que vai ocorrer primeiro é a negociação, que se dá de forma horizontal, onde as pessoas envolvidas vão ter uma conversa como dois iguais, falar dos seus gostos, dos seus desejos, dos seus limites e estabelecer os acordos que vão funcionar como a lei da relação (no caso de uma D/s) ou das práticas (no caso de play partners). A partir do momento que os acordos foram selados, aí sim inicia-se a dinâmica vertical e a hierarquia entra como o primeiro pacto desse jogo lúdico, que cria os laços sociais e desperta o senso de comunidade, uma vez que os participantes começam a compartilhar dos mesmos ritos.

Portanto, uma vez que temos claro que o BDSM é vivenciado através dos jogos lúdicos, sabemos que ninguém pertence de fato ao outro, que não há direito de propriedade de um indivíduo em relação ao outro. Mas, então, como se dão as narrativas de poder? Na verdade, o sujeito posiciona-se como uma figura de poder e passa a utilizar determinado vestuário e objetos que são culturalmente identificados pela comunidade como característicos de uma figura dominante. E, então, compactuamos com essa narrativa e passamos a reproduzir que o BDSM é sobre hierarquia e jogos de poder, em vez de cenários metafóricos.

Houve também um contínuo esforço da nossa comunidade brasileira em traduzir os termos do inglês “TOP” para “superior” e “BOTTOM” para “inferior”. Top e bottom descrevem posições na prática, sendo ativo e passivo em uma tradução literal. Dessa forma, podemos entender que a hierarquia defendida pela comunidade estadunidense resume que todas as práticas possuem um ativo e um passivo, alguém que está agindo e alguém que recebe, e não uma posição de verticalidade, sendo o passivo uma figura inferior. A compreensão de ‘hierarquia’ foi construída sob significados diferentes para cada um dos dois lados do continente.

Absolutamente, a pessoa passiva na cena não é menor, não é inferior, ela só está em uma outra posição no limite pré-estabelecido entre os praticantes e, voltando para o cenário lúdico, uma pessoa que deseja ser a passiva pode também flertar com uma sexualidade masoquista, querendo então ser humilhada por estar recebendo aquilo e, aqui, nasce um “jogo de faz de conta” de submissão, de inferioridade. 

Dito tudo isso, preciso reforçar inúmeras vezes que os acordos são feitos e depois assumimos suas respectivas posições pautadas no prazer pessoal de cada um. Dessa forma, você não é dono, você gosta da sensação imaginária de ser dono e aquela pessoa acorda em dar para você essa posição de propriedade. Ponto.

De fora pra dentro

Nesse campo identifico algumas problemáticas ao afirmarmos que o BDSM é sobre jogos de poder. Pois uma pessoa pode se interessar em viver superior a outra pessoa exatamente por não ter isso em sua vida, e não pela sexualidade ou por qualquer outro fator inerente ao BDSM. Veja a linha de raciocínio: Se assumirmos essa postura, então, uma pessoa que considera-se um derrotado em sua vida pessoal poderá olhar para o BDSM como fuga de um contexto onde ele não conseguiu alcançar a posição que gostaria e vê no BDSM, enquanto jogo de poder, uma possibilidade de assumir a persona que ele não é na vida real. 

Dessa forma, o indivíduo não busca no BDSM um local para viver sua sexualidade, não descobre que tem prazer em sentir dor ou infligir dor, mas sim vê no espaço lúdico um escape, uma forma de se sentir alguém, extravasando nesse meio todas as suas dores, frustrações e irritações.

E, veja, que não necessariamente essa pessoa vai apresentar sinais de ser um Red Flag, porque ela pode seguir todos os protocolos, agir de acordo com o que foi acordado, respeitando a consensualidade, mas ainda sim ela vai estar usando o BDSM como uma válvula de escape para fugir da sua realidade, evitando lidar com seus próprios problemas, simplesmente porque ela ouviu que no BDSM ela pode dizer que ela tem o poder, que é um dominante e as coisas passam a acontecer do jeito que ela gostaria que fossem.

E justamente pelo fato do BDSM tratar de dinâmicas lúdicas, essa pessoa vai viver com um eterno sentimento de vazio, porque ela não vai estar solucionando de fato suas inquietações cotidianas. Um exemplo disso é o dominador que quer ter um harém e está sempre em busca de novas subs e nunca se sente satisfeito, pois já que se vende a ideia de que o BDSM só é vivenciado dentro de uma D/s, ele pensa que quanto mais posses ele tiver no seu harém, maior vai ser seu status de poder e alcançar esse status pra ele é algo maior que sua realização pessoal. Isso acaba por gerar algumas outras problemáticas, como por exemplo, figuras dominantes que acreditam ter recebido aval para serem grossos, ríspidos e abusadores.  

De dentro pra fora 

Ao contrário do cenário descrito acima, existem pessoas que realmente vêm para o BDSM vivenciar uma sexualidade, por ter entendido o movimento de contracultura sexual e por aceitarem que seus prazeres são alcançados através de dinâmicas diferentes do padrão estabelecido socialmente.

Essa pessoa, então, entra nesse universo com o intuito de experienciar sua sexualidade, mas depara-se com falas que defendem que o BDSM é sobre poder e não sobre aquela sexualidade dissidente que ela descobriu em si mesma. Ela dá de cara com uma série de protocolos e, então, começa a segui-los. Porém, como no exemplo acima, como enfatiza-se que o BDSM está ligado à D/s, quando uma relação termina, o indivíduo vê o poder indo embora junto com o fim da relação.


Diante desse cenário onde o indivíduo passa a absorver que tudo é sobre poder e que ele precisa ter cada vez mais poder, algumas pessoas desenvolvem a “síndrome de pequeno poder”, passando a agir de forma autoritária, violenta e abusiva sem importar-se com as pessoas e com as consequências dos seus atos e distanciando-se cada vez mais da realidade.


Assim, ao reforçar a importância do poder nas práticas BDSM, estamos contribuindo para gerar pessoas inseguras, ansiosas, ciumentas e com baixa auto-estima. Nessa perspectiva, seria o BDSM o causador desses quadros e não sua respectiva cura para sua infelicidade sexual e ao mesmo tempo em que esquecemos que o BDSM na verdade é pautado em acordos, deixando esse grande tópico em segundo plano.

Em meu texto “Um filme sobre prazeres, sexualidade, fetiches e BDSM”, apresentei o TEDx da cientista cognitiva Lera Boroditsky que aborda como a linguagem modifica nossa forma de pensar e coloco-o novamente aqui, pois é nesse ponto que a comunidade peca em abolir alguns termos ou algumas correntes de pensamento e reforçar alguns estigmas, assim sendo, as palavras que usamos e o peso que elas possuem irão modificar nossa forma de pensar gerando exatamente essa questão apresentada.

Conclusão

Retomando o que falei sobre a importância de entender o BDSM enquanto jogo lúdico e diante das problemáticas que apontei quando focamos no poder e na hierarquia enquanto elementos centrais das dinâmicas, pode-se perceber o risco que corremos de criar um meio tóxico e nocivo para os indivíduos, com pessoas de um lado tentando usar o BDSM para tapar um buraco de suas vidas e outras desenvolvendo síndromes capazes de afetar toda sua rotina.

Centralizando a discussão no poder geram-se as intrigas, as fofocas, as disputas, dominadores flertando com a posse de outro dominador, tudo em nome do poder, para que seu status de poder esteja sempre em ascensão.

Acredito, no entanto, que o BDSM não é apenas sobre poder e hierarquia, e que seria muito mais saudável pensar que nossas práticas devem ter como foco os acordos e, aí sim, dentro dos acordos estabelecerem-se as dinâmicas de poder.

Vou ainda um pouco além… Pensando no peso social e cultural que uma palavra traz consigo, substituir o termo poder por acordo e focar que esses acordos serão vivenciados dentro de cenários lúdicos para colocar em prática uma sexualidade não convencional, o assunto “poder” deixa o primeiro plano e passa a ter o peso e a importância que as pessoas acordarem que ele deva ter dentro de suas relações.

Assim, temos a oportunidade de criar uma comunidade diferente da sociedade em que estamos inseridos, temos a possibilidade de criar um ambiente que não seja nocivo, com todos os problemas que apontei. 

E fazer parte do BDSM é fazer parte de um percentual da população que é estigmatizado, mas, principalmente, é fazer parte de uma comunidade que quer e pode fazer a diferença, que entende o valor do movimento de contracultura e se engaja para que esse meio seja construído em cima de valores éticos, responsáveis e saudáveis para todos os seus integrantes.

Não podemos esquecer que nem o poder e nem a hierarquia são atributos natos, uma vez que nenhum indivíduo nasce superior ao outro. Logo, esses dois elementos fazem parte de uma construção social, de um conjunto de convenções criadas para sustentar as diferenças de status. E no BDSM acontece a mesma coisa: a hierarquia e o poder são construídos através do fetiche e da mesma forma que são construídos, podem ser desfeitos. E o que faz com que a hierarquia e o poder se diluam, se não o fim dos acordos?

Portanto, deixo aqui a minha contribuição para que possamos refletir sobre o que temos de real nas relações BDSM. O que baseia de verdade as relações antes de qualquer coisa são os acordos e tanto o poder, quanto a hierarquia são construções que só valem enquanto os acordos perdurarem, e, por isso, defendo que fiquem em segundo plano, como parte do que pode ser combinado entre as pessoas.

AUTOR

Mestre Sadic​​​​

​Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.

Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P

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1 comment

  1. morroi 14 fevereiro, 2021 at 18:38 Reply

    Excelente reflexão do Mestre Sadic em complementação às resenhas do Dr. Psi e da Sra. Storm! O BDSM me interessa muito pelo fetiche dos acessórios e técnicas, mas também muito pelo role play consensual e não tóxico. Grande parte da minha vida estive no poder, no comando (e assim continuo), sendo admirado e por vezes invejado. Mas sempre tive muito cuidado e empatia com os que estão “abaixo” de mim. E não há como me colocar no lugar de alguém menor na vida profissional, acredito que daí vem meu desejo de me colocar em submissão porém com alguém que tenha respeito e cuidado. Parabéns e obrigado Dom Barbudo!

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