BDSM: CULTURA, SUBCULTURA OU CONTRACULTURA?

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Se você está acompanhando a minha coluna aos sábados, provavelmente notou que o BDSM possui algumas explicações possíveis. Não digo apenas de construção e formação, mas também em definição. Citei aqui que o BDSM no Brasil era visto como uma subcultura (SM-E) quando comparado a contracultura estadunidense, mas aqui neste post, usei o termo cultura para descrever o mesmo movimento. Por quê? Esse é o tema de hoje, me acompanha?

Antes de tudo! Você deve ter lido aqui, eu sou o colunista de sábado e tenho como objetivo apresentar algumas linhas de raciocínio, construções e fatos ao longo da nossa história a fim de enriquecer as bases epistemológicas dos praticantes. Não me posiciono como o portador da razão, muito pelo contrário, apenas um pesquisador que sempre está encontrando coisas novas e adoraria dividi-las com todo mundo.

 

Preparação: 

Este talvez seja um dos poucos assuntos que cercam nossa comunidade que estamos longe de uma definição. Geralmente temos êxito em definir e contextualizar as práticas no BDSM, mas esse assunto se embaraça um pouco quando vamos definir a comunidade ou usarmos alguns dos posicionamentos políticos e sociais que esse acrônimo ostenta e aqui mora uma grande discussão. Há diversas linhas de raciocínio defendidas pelos estudiosos, mas procurarei ao máximo não definir um partido e quando assim fizer, deixarei claro o meu posicionamento reforçando uma dessas linhas, contudo, antes de prosseguirmos eu quero que você pause e responda a seguinte pergunta: O BDSM é uma cultura, uma subcultura ou uma contracultura? 

Tendo essa resposta em seu pensamento, vamos adiante e entender o porquê usei cada uma dessas palavras para definir momentos históricos diferentes:

 

Cultura:

É muito difícil definir de uma forma simples o que se enquadraria como uma cultura. Para você ter uma noção da complexidade desse tema, em 1952 os antropólogos A.L. Kroeber e Clyde Kluckhohn analisaram 162 diferentes definições de cultura e concluíram que não seria possível uma definição de cultura que contentaria a maioria dos antropólogos, então definir o que é cultura já é difícil, quem dirá sobre o BDSM, não é mesmo?

Bom, para partirmos de algum lugar, vamos para duas definições: O Edward Tylor foi um dos pioneiros da antropologia e uma das primeiras propostas científicas de que cultura seria “em seu amplo sentido etnográfico, este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou quaisquer outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”.

Note o adquirido e o membro de uma sociedade nessa definição. Apesar de não ficar tão claro a cultura material na proposta de Tylor, a cultura seria algo socialmente adquirido, não genético ou inato. Complementarmente, para Kroeber a cultura seria o superorgânico destacado do mundo biológico e material, com existência própria. Assim, a cultura geraria a própria cultura. 

Sem me alongar muito e trazendo essas linhas de pensamento para a discussão apresentada aqui, há diversos detalhes que compõem o BDSM: Definições e nomenclaturas (SSC, RACK, TPE, EPE, PPE e protocolos), roupas (burlesco, couro, látex, social elegante) e as regras (como acordos, safeword, aftercare). 

Se nos apegarmos apenas a esse contexto, podemos sim afirmar que o BDSM se trata de uma cultura que visa e reforça essas definições, e que possui suas próprias regras para fazer parte dele. Reforçando o que Kroeber e Tylor disseram: Nada disso seria inato ao ser humano e está em constante mudança. 

No entanto, daqui em diante as coisas passam a ser interessantes. Apesar do BDSM ter a sua própria cultura e seu jeito de agir, nada disso nasceu a partir dele. 

 

Subcultura:

“Subcultura é o conjunto de particularidades culturais de um grupo que se dista do modo de vida dominante sem se desprender dele”. Então, esse termo também cabe, mas não em todos os contextos apresentados.

Pense naquele casal que deseja vivenciar seus fetiches e prazeres, ele deve ter seus objetos e estar familiarizado com todos os termos para fazer parte do BDSM? O conceito do BDSM seria um só, ou ele abraçará diversos e se modificará no ponto de vista de quem o segue, portanto, ele seria uma subcultura (com o mesmo nome) de cada cultura (o mainstream) que está inserido.

Aqui no Brasil, o termo subcultura se aplica muito bem, porque quando a Wilma Azevedo escrevia as colunas da revista, não reforçava a necessidade de existência de uma comunidade e definição de regras e convívio, apenas dizia que aquilo deveria ser praticado na particularidade do casal.

Esse não é o único argumento pró-subcultura, porque o que chamaremos de BDSM seria oriundo de diversos grupos apartados (Shibari, Leather, LGBT, Poliamoristas, Bondagistas, Fisters, EPEs e etc). Como vocês acompanham neste blog, nem todo o Leatherman é um BDSMer, então o BDSM seria um movimento novo que nasce da união dos fragmentos específicos de outros grupos, tendo, então, sua própria subcultura (que seria o ponto em comum entre todas as outras anteriores) e voilá! Cá estamos hoje.

Porém, é importante reforçar que há algumas críticas bastante elaboradas ao termo ‘subcultura’, pois ele reforça que só existe uma cultura (o dominante e/ou mainstream) e todos os outros grupos derivados dele seriam subculturas. Mas só existe mesmo uma cultura? Para isso, deixo aqui uma reflexão da Ruth Correia Leite Cardoso em Sub-cultura: uma terminologia adequada?

Assim sendo, seria impreciso dizer que o BDSM seria uma subcultura e não uma cultura propriamente dita, pois as culturas podem e devem coexistir, não? 

A discussão até aqui seria interminável, mas eu apresento agora o terceiro agente dessa batalha.

 

Contracultura:

Os movimentos de contracultura começaram nos anos 60 nos Estados Unidos e eles procuravam questionar o status quo ou o mainstream. Um exemplo simples de algumas reflexões que nasceram com esses movimentos: A mulher seria uma ‘posição’ fruto de uma sociedade e foi vista como inferior e passiva, tanto na vida quanto durante a prática sexual, pois vemos esse binarismo até em relações gays onde o passivo é chamado de “mulherzinha”. 

Concordamos que falar de sexo é um tema extremamente delicado, porque sexo é visto como algo errado, pois é tratado como tabu social e a sua educação em escolas públicas é terminantemente recriminada. 

Porém, sem a conscientização e separação do sexo e gênero, sexualidade e prática sexual, nós como sociedade reproduzimos alguns equívocos e isso se reflete em nossa cultura ou comunidade, pois enquanto BDSMers, ainda estamos nos posicionando como pessoas doentes que possuem uma sexualidade desviante, que temos traumas e deles surgem os nossos fetiches.

O biólogo Alfred Kinsey fundou o Kinsey Institute for Research in Sex, Gender and Reproduction (Kinsey Institute) em 1947 e esse instituto publicou dois importantes manifestos sobre a sexualidade humana: Sexual Behavior in the Human Male (1948) e Sexual Behavior in the Human Female (1953), ambos conhecidos como Estudos de Kinsey

Uma das várias conclusões que os estudos apresenta é que no mínimo 11% dos seres humanos possuem uma sexualidade não-convencional, ou seja: possuem uma expressão de libido completamente fora do senso comum e que, provavelmente, iria ser vista como desviante ou complicada para os demais. O Jay Wiseman apresenta o estudo do Kinsey no livro SM 101: A Realistic Introduction (1996) e reforça que a comunidade SM e suas práticas são as apresentadas no estudo, sendo assim, monta a frase icônica:

Aprender a fazer SM é como aprender a fazer sexo de novo.”

Entender que há apenas um jeito de fazer sexo e limitar nossa sexualidade compõe tudo aquilo que compreendemos como cultura, mas também nos limita, portanto, em 1970 foi publicado o seguinte anúncio na revista SCREW

“Masoquista? Feliz? É curável? A psiquiatria ajuda? É possível um estilo de vida satisfatório? Existe a liberdade feminina, a liberdade negra, a liberdade gay, etc. Não é hora de colocarmos algo juntos?

Muita gente se identificou com essas palavras e entrou em contato com o endereço postal que seguia este anúncio, daí surgiu o primeiro grupo SM que tinha como propósito educar e conscientizar as práticas sexuais e abandonar o sentimento de culpa entre os praticantes, o TES (The Eulenspiegel Society)!

Em 2005, Darren Langdridge e Trevor Butt publicaram um brilhante artigo científico chamado The erotic construction of power exchange, em que apresentam algumas reflexões sobre sexualidade e eu as reuni aqui: 

“Os construtivistas não precisarão ser convencidos de que a vida erótica é, pelo menos em parte, o produto de um processo de construção pessoal.” (…) “Na sociedade contemporânea, estamos testemunhando a proliferação de novas narrativas sexuais. Embora tenham de se basear na experiência individual, as novas identidades sexuais requerem um clima social para florescer.” (…) “O tema discursivo relacionado à troca de poder erótico (EPE) serve para construir uma identidade sexual distanciada do discurso médico-patológico percebido do sadomasoquismo, mas não de identidades sadomasoquistas mais amplas” (…) “Uma qualidade fundamental da troca de poder erótico em toda prática sadomasoquista é a maneira dinâmica como o poder pode ser empregado. Os praticantes usam o poder de forma criativa em seus relacionamentos para realizar uma ampla variedade de objetivos sexuais e emocionais. Os membros das comunidades EPE estão altamente conscientes de que a negociação é a chave para demarcar o jogo erótico consensual do abuso. O papel da contratação explícita no jogo de poder é crucial e reconhecido como tal nessas comunidades.”

Então, temos duas questões pertinentes que são apresentadas dentro da comunidade: Nós não somos doentes pois isso se trata de uma sexualidade e tudo sempre acontecerá de forma consensual, inclusive, foi exatamente a questão da consensualidade que removeu os termos fetichismo, masoquismo e sadomasoquismo do CID-11, que foi aprovado em 2018 e que entrará em vigor a partir de 2022

 

Conclusão:

A definição de fetiche e sexualidade mudará de acordo com a área de estudo da qual estamos partindo, tal como a compreensão de cultura, subcultura e contracultura para o BDSM. Mas algumas compreensões são ainda bem recentes e alguns paradigmas estão mudando através dos nossos esforços políticos dentro e fora da comunidade. 

Ser homossexual já foi visto como doença e não faltaram teses científicas para comprovar, portanto, eu não faço rodeios para posicionar que, pela minha ótica, o BDSM faz parte de um movimento de contracultura sexual, pois estamos lidando com uma série de sexualidades que se encontram na mesma comunidade. 

Objetos, roupas e partes do corpo compõem uma compreensão sexual que se modificará de pessoa para pessoa e o que hoje chamamos de BDSM se trata deste movimento de identificação e legitimação dessas sexualidades.

Reforço sempre que posso que nós, enquanto comunidade, não deveríamos cogitar a hipótese de que somos doentes ou desviantes e que nossos fetiches e prazeres não são frutos de traumas, portanto, não devemos praticar kinkshamming.

Não é correto resumir ou relativizar nossa sexualidade com qualquer trauma que seja ou ridicularizar outras pessoas por estar buscando, dentro desse universo uma forma de se aceitar.

Contudo, assim como ninguém escolhe ser homossexual, a lógica também se aplica para os fetichistas e praticantes, pois não cabe a nós determinarmos o que gostamos ou o que não gostamos, os prazeres apenas estão aqui dentro e nem todos são iguais, mas temos a mesma comunidade para vivencia-los e entender que existimos e não somos doentes por isso. 

Bom, espero que tenha ficado clara a minha posição nessa reflexão, certo? Mas não acredito que as outras duas estejam completamente erradas, tão pouco são excludentes. Mas e para você, leitor? O BDSM se enquadraria em qual dessas três categorias? Responda-me nos comentários, vamos conversar!

 

AUTOR

Mestre Sadic

Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.

Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P

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3 comments

  1. Margot 31 outubro, 2020 at 15:50 Reply

    Parabéns pelo excelente texto, Mestre Sadic!

    Eu gosto bastante da concepção de BDSM como contracultura porque esse conceito consegue abarcar de forma justa toda a complexidade desse movimento. Primeiramente que, pensar BDSM como cultura, implica em pensar que ele poderia existir a parte da sociedade ocidental (o que eu acredito que seja improvável). Em segundo lugar, pensar BDSM enquanto subcultura, implica em reduzir todas as nuances da nossa sexualidade a uma estética e a algumas regras de comportamentos que estabelecemos entre nós. Pensar BDSM como contracultura, no entanto, consegue reconhecer nossa estética, nossos comportamentos sociais, bem como nossa sexualidade. Contracultura permite que nós reconheçamos que nós transamos (leia-se, satisfazemos nossa libido) diferentemente do que se é dito como ‘normal’. E, ainda que não tivéssemos couro, látex, bares, baladas e toda parafernália fetichista, nós ainda existiríamos. Quando nós pensamos sobre o que a Teoria Queer tem para oferecer sobre as noções de sexualidade, pensar o BDSM sobre esse prisma enriquece bastante o próprio entendimento que praticantes podem ter sobre si mesmo e sobre suas sexualidades; além de que esse entendimento de que não conformamos com as práticas sexuais heteronormativas tem impacto social significativo.

    Tenho acompanhado sua coluna aos sábados e gostaria de agradecer pelo conteúdo de qualidade (sempre muito bem embasado) que tem nos apresentados ao longo dessas últimas semanas. Sem dúvidas que você é uma excelente adição ao grupo de colunistas do site.

  2. Alicia 1 novembro, 2020 at 00:09 Reply

    Primeiramente, gostaria de dizer que logo de início me surpreendi na definição de subcultura, ao dizer que o BDSM seria uma subcultura de cada cultura em que está inserido, vc abre a mente do leitor para novas reflexões sobre vários outros aspectos culturais que nos rondam. Também achei interessante trazer esse ponto dos movimentos norte-americanos de contracultura que defendiam que a mulher seria uma ‘posição’ na sociedade, trazendo à tona toda uma questão psicossocial do processo de construção da ‘identidade mulher’ e do quanto nosso ideal de mulher é muito mais uma construção social do que qualquer outra coisa (que inclusive tem tudo a ver com o pensamento de Beauvoir e a primeira onda do feminismo). Uma outra curiosidade que gostei de saber foi que o sadomasoquismo tinha sido considerado como doença pelo discurso patológico durante tantos anos. Por fim, concordo que o BDSM seja um movimento de contracultura porque numa escala macro ele não apenas questiona as práticas sexuais que nos são impostas como também trás práticas e ideais totalmente diferentes do usual/status quo. Ademais ele também abraça várias identidades sexuais marginalizadas na sociedade. Na minha visão, o BDSM tem o seu ethos centrado na idéia de romper com o status quo, ampliar a noção de “o que é sexo” e por fim construir ‘caixinhas identitárias’ que trazem às pessoas uma noção de comunidade.

  3. Bela 3 novembro, 2020 at 03:40 Reply

    Obrigada, Mestre Sadic, pela rica contribuição sobre o tema. Esse texto traz uma das discussões mais importantes pra mim dentro do BDSM e que transcende a minha busca individual pelo prazer.
    Gosto muito e defendo essa visão do BDSM como contracultura. Até acho que o BDSM já foi uma subcultura da cultura oficial dominante, aquela que é fruto de uma construção social e pregada pelo Estado, pelo mercado, pela mídia, mas o movimento foi tomando forma até não ser mais possível ficar à margem da sociedade como uma subcultura. O BDSM adquiriu o status de contracultura no momento em que sua visão sobre o campo da sexualidade rompe totalmente com a normatização. Não queremos só ficar ali existindo quietinhos no underground enquanto minoria dissidente, queremos mostrar que existem formas diferentes de entender a sexualidade, os prazeres e desejos de maneira oposta ao tomado como padrão, sem ser estigmatizados como doentes ou bizarros. Uma analogia que funciona bem (pra mim) é a de que a subcultura coexiste em silêncio com a cultura dominante, enquanto a contracultura faz barulho. E será que alguém não percebe que o BDSM grita?!
    Enfim, parabéns pelo texto e por trazer sempre temas relevantes para a nossa reflexão.

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