Juiz SM: o casal Aurousseau e o melhor filme sobre BDSM

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Se você está pesquisando para sair do seu casulo ou já começou a bater suas asas no assunto extremamente amplo dos fetiches, sexualidade e BDSM, então imagino que algumas recomendações cinematográficas nunca serão demais para elucidar alguns termos, portanto, hoje irei reforçar uma das minhas recomendações cinematográficas favoritas e contar uma importante história de amor que me emociona. Me acompanha?

Antes de tudo! Como você deve ter lido aqui, eu sou o colunista de sábado e tenho como objetivo apresentar algumas linhas de raciocínio, construções e fatos ao longo da nossa história a fim de enriquecer as bases epistemológicas dos praticantes. Não me posiciono como o portador da razão, muito pelo contrário, apenas um pesquisador que sempre está encontrando coisas novas e adoraria dividi-las com todo mundo.

Intercalando minhas colunas de sábado, também colocarei análises críticas de filmes e livros que influenciaram a nossa cultura e no meu último post sobre filmes, falei sobre a Histoire d’O (Story of O) e sua importância para a nossa atual comunidade, recomendo sua leitura anterior para partirmos dele.

 

Bélgica, 1997

Apesar do nome deste tópico ser parecido com o começo dos episódios de Todo mundo Odeia o Chris, essa também é uma história real mas não é nada cômica e você entenderá o porquê. 

Passando por uma rápida ambientação, os homens brancos europeus eram donos e gerentes de 85% da superfície da Terra ao final do século XIX (como afirmou Anne McClintock em Couro Imperial), então, não é de se estranhar que nossa relação religiosa seja europeia, tal como nosso padrão de beleza e também toda a nossa percepção de realidade seja fruto de um profundo eurocentrismo que se propaga até os dias de hoje. Nosso julgamento parte sempre desse olhar e, como você deve ter visto nesse post, a Bélgica faz divisa com a França, Alemanha e Holanda, portanto, além desses países serem palco de diversos contextos importantes para a nossa construção (positiva e negativa), o centro europeu era sexualmente ativo, assim sendo, o desenvolvimento cultural sobre sexualidade tinha o Estado como um importante rival, pois ele comumente afirmava através do senso comum os discursos castradores da ‘ciência’ para qualquer expressão de libido.

Com isso em mente, você perceberá que havia uma força pública para fechar os bares e baladas que possuíssem qualquer atividade que reforçasse um estilo de vida “fora dos padrões”, mas no ano em questão, veio a público uma investigação que ocorria sigilosamente, envolvendo um dos mais respeitáveis desembargadores da Bélgica e uma atividade criminosa ligada à sua esposa que envolvia práticas sadomasoquistas em clubes da mesma temática. O desembargador Koen Aurousseau, que iniciou sua carreira no magistrado em 1979, sempre foi muito elogiado por seus feitos contra esses locais que defendiam tais práticas ‘desviantes’ e, por uma ironia do destino, fora associado em uma investigação desse porte. 

 

Koen foi afastado do cargo assim que as investigações começaram e, conforme foram encontrando provas que ligassem o casal à práticas sadomasoquistas, o caso tomou proporções inimagináveis! Muitos blogs e sites franceses acompanharam todas as partes do caso e esses são as principais fontes de informação até os dias de hoje, tanto que o nome do Koen Aurousseau se encontra apenas no wikipédia francês.

o casal original: Magda e Koen Aurousseau

o casal original: Magda e Koen Aurousseau

 

O Julgamento

O Tribunal reconheceu que os violentos tratamentos sofridos por Magda Aurousseau (sua esposa), com chicote, alicate, eletricidade, agulhas e queimaduras, não produziram quaisquer consequências para a vida de Magda, mas apesar disso e do testemunho da própria alegando consensualidade nas práticas, Koen Aurousseau foi condenado em 30 de setembro de 1997 ao abrigo do artigo 397.º do Código Penal a um ano de prisão por agressão em liberdade condicional. Foi ainda condenado, nos termos dos artigos 380 e 398, à multa de cem mil francos (algo em torno de R$ 599.107,89 nos dias de hoje) por incitação à libertinagem, isto é, nos termos da lei da época: “assistência ao serviço da fornicação para outrem”. Aqui mora uma análise cristã extremamente prudente: fornicação tem aqui o significado definido pelo tribunal criminal de Bruxelas (Bélgica) em uma sentença de 15 de dezembro de 1994 como sadomasoquismo violento, prática assimilada pela mesma sentença à pedofilia e à zoofilia. Sim, isso mesmo, o Código Penal julga pessoas que incitem outras pessoas a terem práticas sexuais assíduas na mesma medida e proporção que um crime de pedofilia e/ou zoofilia. 

É importante lembrar que o termo libertinagem havia essa conotação moral-cristã dada ao movimento libertino inclusive constantemente defendido pelo próprio Marquês de Sade (já ouviu falar?).

Em um momento de sua vida, Koen recebeu uma quantia em dinheiro para que uma terceira pessoa realizasse práticas de spanking em Magda, portanto, Koen foi acusado de proxenetismo (cafetinagem) que implicou a perda dos direitos civis e a proibição de exercer a profissão por cinco anos, o que equivale a encerrar a carreira. Como as gravações dos vídeos e fotos encontrados em sua casa não foram feitas para fins de exploração comercial, ele escapa da acusação de publicidade obscena. 

Depois de cumprir sua pena e devido à perda de seus direitos civis, Koen Aurousseau não recebe proteção ou assistência social e é forçado a vender sua casa, e o casal não consegue se reintegrar na sociedade necessitando se mudar para Mechelen (também na Bélgica) e recomeçar uma vida sendo garçom em um bistrô e morando em um pequeno apartamento nos fundos do trabalho.

 

Cena do filme Juiz SM (SM Judge / SM Rechter), o casal foi interpretado
por Gene Bervoets e Veerle Dobbelaere

Toda a história possui um outro lado da história!

Se nos apegarmos por essa narrativa, perceberemos os diversos erros que Koen cometeu e podemos até considerar justificável sua sentença, mas a parte mais ignorada nessa história é exatamente a parte mais importante: sua companheira, Magda Aurousseau! Essa história virou um filme belga em 2009 (com os nomes: SM Rechter, SM Judge e Juíz SM) expondo exatamente a parte dela.

As reviravoltas do caso e as acusações repercutiram não só na europa, mas também no mundo e dentro do ramo jurídico, pois começamos a discutir e questionar se de fato a sentença fora bem aplicada. Por exemplo, aqui no Brasil, esse caso foi mencionado e discutido sobre ​​​​​​​os rigores da profissão de juiz e a liberdade de expressão, veja: 

“Na Bélgica, em 1997, o desembargador Koen, que gozava de bom conceito na comunidade jurídica, enfrentou a depressão de sua mulher, Magda, que, após anos de casamento, revela sua natureza masoquista. Koen, para satisfazê-la, passou a levá-la a locais em que eram feitas práticas sadomasoquistas. Um dia é visto por um desafeto, que tira fotos comprometedoras e as leva aos órgãos de controle.

O magistrado foi processado disciplinarmente e defendeu-se dizendo que sua vida sexual era assunto privado. A acusação, todavia, sustentava que, no caso, houve repercussão pública. Koen foi afastado da magistratura por seu tribunal. Recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos, mas não teve sucesso”

 

Conclusão:

Esse é um dos filmes que sempre recomendo assistir quando o assunto é BDSM, talvez seja um filme de entrada mais importante que todos os outros. 

O filme se preocupa em apresentar a ética envolvida no SM, pois mostra ao telespectador a safeword, subspace, acordos, consensualidade e respeito entre os envolvidos. Também deixa claro que Magda ao constatar a profunda depressão, descobre que é masoquista e Koen mesmo não tendo tendências sádicas, por amor à sua companheira, aceita entrar com ela nesse mundo e é por amor que eles enfrentam um profundo preconceito social que assola a todos nós até os dias de hoje.

Conhecer o caso sem conhecer sua história sempre nos abre parênteses para interpretações levianas, pois estaremos fadados ao senso comum. Por que eles estavam errados? Porque alguém disse uma vez que nossas práticas eram doenças, crimes e coisas mais. Há pessoas que reforçam isso e devemos combater. Há muitas Magdas dentro da nossa comunidade que só encontrarão sua expressão de prazer com práticas sadomasoquistas, portanto, façamos do BDSM uma comunidade de resistência ética por todos nós!

AUTOR

Mestre Sadic

Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.

Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P

Site: https://mestresadic.com.br

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