NO BDSM TEMOS FETICHES OU UMA SEXUALIDADE?

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Semana passada comecei uma nova linha de raciocínio na qual tenho como objetivo desembaraçar alguns conceitos apresentados anteriormente pela internet, mas para chegarmos lá precisamos alinhar alguns discursos e talvez entender uma separação básica: Qual a diferença entre fetiche e sexualidade? Os praticantes de BDSM possuem fetiches ou estamos todos desfrutando de uma nova sexualidade? Poderia ser os dois? Me acompanha nessa análise!

Antes de tudo! Como você deve ter lido aqui, eu sou o colunista de sábado e tenho como objetivo apresentar algumas linhas de raciocínio, construções e fatos ao longo da nossa história a fim de enriquecer as bases epistemológicas dos praticantes. Não me posiciono como o portador da razão, muito pelo contrário, apenas um pesquisador que sempre está encontrando coisas novas e adoraria dividi-las com todo mundo.

Intercalando minhas colunas de sábado, também colocarei análises críticas de filmes e livros que influenciaram a nossa cultura e hoje é dia de recomendação cinematográfica, então fica de olho no final! 

Recapitulando

Como elaborei aqui, antes de falarmos de fetiches e sexualidade, precisamos falar da libido que é essa vontade primordial para executar todas as coisas e, sendo ela extremamente fisiológica, pode ser manipulada ou intensificada através da alimentação ou de alguns outros atributos químicos, mas também sofrerá impacto pelo ambiente em que estamos inseridos e pelo modo de vida que levamos.

Assim sendo, a falta de libido poderá desembocar em diversas doenças que devem ser tratadas com cautela sendo uma delas a própria depressão. Em contrapartida, ter uma vida sexualmente ativa e alcançar o seu orgasmo (isso é, satisfazer sua libido sexual), sempre se mostrou como uma ótima prevenção de algumas dessas mesmas doenças. 

No entanto, reforcei no texto anterior e cito novamente que seu corpo pode apresentar expressões de libido (sexuais) bem particulares e com o momento que estamos vivendo (socialmente falando), novas compreensões dessa libido irão surgir e, consequentemente, estaremos lidando com novas narrativas sexuais. Como disseram Darren Langdridge e Trevor Butt  no artigo científico entitulado The erotic construction of power exchange:

“Os construtivistas não precisarão ser convencidos de que a vida erótica é, pelo menos em parte, o produto de um processo de construção pessoal.” (…) “Na sociedade contemporânea, estamos testemunhando a proliferação de novas narrativas sexuais. Embora tenham de se basear na experiência individual, as novas identidades sexuais requerem um clima social para florescer.”

Vamos partir desse ponto para o texto de hoje!

O que é fetiche?

Em 1760, Charles de Brosses (um filósofo francês), cunhou o termo fétichisme para se referir a práticas de “religiões primitivas” e em 1867, o alemão Karl Marx utilizou esse mesmo termo, atribuindo-lhe uma nova conotação de fetichismo da mercadoria e passou a usar a ideia francesa da magia primitiva para expressar a forma social central da economia industrial moderna. Em 1886, o psiquiatra alemão-austríaco Richard von Krafft-Ebing relaciona o termo com outra conotação, trazendo os sentidos para a área médica. Sendo assim, “Fetichismo” agora seria o termo guarda-chuva para transtornos sexuais que envolvessem objetos e em 1905, o também alemão Sigmund Freud transferiu o termo  “fetiche” para o domínio das “perversões” eróticas, mas recorreu às definições propostas pelo Krafft em seu ensaio sobre a sexualidade na infância. As “ciências do homem” – filosofia, psiquiatria, economia e psicanálise – tomaram forma e contorno da invenção do fetiche primitivo, sendo a porta de todos os outros males posteriores. 

Vamos entender melhor isso…

Quando de Brosses escreveu Du culte des dieux fétiches ou Parallèle de l’ancienne religion de l’Egypte avec la religion actuelle de Nigritie (O culto aos deuses fetichistas ou Análise da antiga religião do Egito com a atual religião das terras negras), estava fazendo uma análise partindo do seu ponto de vista de um colonizador cristão branco e, devido a isso, temos muitos problemas nessa concepção que nos ronda até hoje.

Para De Brosses, uma criança se apega a um brinquedo e cria nele afeto a ponto de torná-lo sagrado, de modo a nunca mais querer se separar dele. Para De Brosses, os cultos analisados e seus objetos eram abstratos exatamente por não serem imagens personificadas (como mostra na foto abaixo), então essa relação com a infância lhe pareceu óbvia. Ele concluiu, então, que as sociedades africanas seriam compostas por adultos com uma mentalidade primitiva (infantis), pois se relacionavam com brinquedos que para eles eram sagrados.

objetos tradicionais de um babaláwo (sacerdote à Ọ̀rúnmìlà)

Como o navegante português Diogo Cão havia retratado alguns séculos antes que a religião africana era dotada de feitiços (fetiso) para fins medicinais, De Brosses se apega a esse termo e conota que o estado de espírito de um religioso africano e de uma criança européia seriam idênticos, pois ambos estão enfeitiçados pelo objeto (afetivamente falando).

Quando Marx elabora seus conceitos e passa a ter seguidores (mesmo que contra sua vontade), ele refere que o Mercado (como macroestrutura) constrói uma relação íntima e complexa entre as relações econômicas da produção com os objetos negociados no mercado, sendo assim, o fetichismo da mercadoria subtrai o valor econômico e ressalta o valor intrínseco no produto que só fará sentido para o comprador ou para o mercado.

  • Exemplo 1: Você não precisa de um carro, mas sim da nova BMW. 
  • Exemplo 2: O novo IPhone faz tudo o que todos os celulares fazem e muito mais, porque é um IPhone. 

Então aquela relação íntima do fetiche ao objeto de culto e adoração (De Brosses) agora ganha uma visão social e mercadológica (Marx).

Analisando friamente esses dois exemplos, temos duas distintas análises sobre o termo fetiche e fetichismo, certo? Mas esses termos caíram para a área sexual pelo psicólogo francês Alfred Binet e pelo psiquiatra alemão Krafft-Ebing.

De 1880 à 1911, Alfred Binet publicou uma série de artigos e estudos sobre a mente humana no evento chamado Revue Philosophique em Paris, tornando pública uma série de conceitos e conclusões usadas até hoje, por exemplo, o próprio Teste de QI. Em 1887, o estudo Le fétichisme dans l’amour (algo como o “fetichismo do amor”) que era apresentado e discutido desde 1880, foi catalogado e publicado.

Neste estudo, Binet apresenta casos de pessoas que se excitam sexualmente com partes do corpo, como cabelos, olhos, mãos e odor corporal e também objetos inanimados, como sapatos roupas, lenços, bijuterias, e com algumas práticas eróticas, como o exibicionismo, dor e a inversão, que, se compararmos à descrição do próprio Binet no livro publicado sobre esse último assunto, estamos falando claramente da homossexualidade, exatamente como é nos dias de hoje.

De uma forma ou de outra, o pensamento determinista dos dois franceses (De Brosses e Binet) estão interligados, pois segundo eles, uma pessoa consegue adorar um objeto a ponto de torná-lo sagrado, uma outra pessoa consegue adorar uma parte do corpo ou objeto a ponto de amá-las o suficiente para se excitar. 

A conclusão desse pensamento até pode parecer aceitável para os dias de hoje, mas nem sempre foi assim. 

Para entendermos a análise pejorativa de Binet, é necessário compreender que, no século XIX, as relações amorosas eram formadas por questões sociais e financeiras, completamente alheias ao sexual. Você ou sua família escolhia um marido ou uma esposa porque essa pessoa era adequada para seu padrão de vida e para sua reputação na sociedade, e não porque ela te dava tesão e o sexo era incrível. Veja que o sexo pré-marital era extremamente condenado socialmente, então, Binet teve uma percepção extremamente à frente do senso comum, entendendo que há detalhes que nos chamam atenção mesmo em um casamento arranjado.

Nessa época, a noção que se tinha do desejo sexual era de que se tratava de um impulso, de resquícios do instinto animalesco que ainda prevalecia no espírito humano e que todo homem que não conseguisse controlar esses instintos, não seria diferente de um mero selvagem. Na visão de Binet, homens que se excitam sexualmente com objetos e práticas eróticas se assemelhavam aos mesmos selvagens descritos outrora por De Brosses, adoradores de objetos inanimados e da natureza como substitutos do Deus cristão e, acredite se quiser, pelas palavras do próprio Binet, ao praticar algo assim, o indivíduo se tornará imoral e será condenado a vagar no inferno (sim, isso mesmo, a ciência e a moral cristã ainda andavam juntas).​​

​Um ano antes (1886) e, sem que possamos afirmar qualquer envolvimento do Krafft-Ebing com esses estudos franceses, mas reconhecendo que França e Alemanha são países vizinhos e são territórios extremamente pequenos geograficamente, ideologicamente falando os conceitos provavelmente teriam se esbarrado, pois surge na área médica psiquiátrica o estudo Psychopathia Sexualis, relatando uma série de transtornos sexuais.

Nesse extensivo estudo sobre a sexualidade humana, Krafft-Ebing trata a homossexualidade como um transtorno psiquiátrico (usando o termo homossexualismo), resumindo-a a uma doença inata ao indivíduo sob a qual ele não tem controle (por isso um transtorno), contrariando a percepção social de que se trataria de imoralidade e falta de autocontrole daqueles que praticariam a inversão.

Mas o homossexual não foi o único alvo desse estudo. Percebendo que pessoas poderiam ter alguma relação sexual inconsciente com a dor, objetos e mudança de personalidade a ponto de querer se vestir com roupas do gênero oposto (sendo um “transtorno de identidade sexual“), Krafft adota os seguintes nomes para esses “transtornos“: masoquismo, sadomasoquismo, fetichismo, travestismo, entre outros.

Até aqui estamos nadando em um erro semântico e bastante problemático: Todos (com exceção do Binet) descreveram o fetichismo como algo relacionado a objetos sem que o fetichista possuísse controle. Quando esse termo caiu no campo sexual, passamos a ter uma nova perspectiva sobre o assunto, analisando como um comportamento que hoje conseguimos destacar como uma orientação sexual. Por exemplo, colocando na mesma cláusula do homossexual (em que a libido está no mesmo gênero), podemos fazer a mesma análise considerando que no “Fetichismo”, a libido está na relação de partes do corpo E/OU em objetos.

A Sexualidade Kinky:

Como na ciência ocidental tudo deve ser analisado e comprovado através de um método científico, temos algumas análises contemporâneas que sustentam esse argumento.

O autor do termo RACK, Gary Switch foi entrevistado em 2003 pela revista The Bottom Line para que pudesse contar a origem do termo RACK, ele publicou em 2008 a entrevista na íntegra no seu perfil do fetlife e você pode ler o material traduzido pela Equina Nur aqui.

Nessa entrevista, Gary diz algo extremamente interessante logo após ter associado a letra K (no acrônimo RACK – Kink) em “tara sexual” ou “vontade sexual”.

“O termo “kink,” [tara, fetiche, perversão] a propósito, já existia antes da comunidade leather moderna. Recebi um e-mail de um Ph.D. cuja dissertação aborda a história da comunidade leather nos EUA e ele me disse que “kink” era usado no século XIX por praticantes de sexualidades alternativas. Esse termo foi deliberadamente escolhido em oposição à terminologia médica que estava surgindo e que patologizava condições como masoquismo, sadismo e parafilia. Então fique orgulhoso, você é kinky!”

Gary não citou o nome do Ph.D., no entanto, Robert Bienvenu (que é Ph.D. em sociologia) em sua pesquisa sobre O desenvolvimento cultural e o estilo de vida sadomasoquista no século vinte dos Estados Unidos (1999), cita diversas vezes o termo “Kink” (entre aspas mesmo) alegando que era um dos termos usados pelos praticantes e reforça, também, que os integrantes da comunidade se diziam parte de “um mundo bizarro” (the bizarre world).

Em 1947, o biólogo americano, professor de entomologia, zoologia e sexólogo Alfred Kinsey fundou o Instituto de Pesquisa do Sexo na Universidade de Indiana (hoje chamado de Instituto Kinsey para Pesquisa do Sexo, Gênero e Reprodução, ou só Kinsey Institute). Como biólogo, Kinsey afirmou que, assim como os animais que possuem gostos específicos para se reproduzir e desenvolvem múltiplas sexualidades entre os mesmos de sua espécie, os seres humanos TAMBÉM teriam esse mesmo comportamento, uma vez que somos homo sapiens sapiens, descendentes de uma espécie de primatas. Com isso, ele quer dizer que qualquer comportamento que se afaste da norma estabelecida deve ser considerado normal e, inclusive, afirma que os demais comportamentos padrão são, na verdade, construções sociais e culturais que inibem a real natureza do homem.

Esse instituto de pesquisa e testes sobre sexualidade foi responsável pela publicação de duas brilhantes conclusões: Sexual Behavior in the Human Male, em 1948 e Sexual Behavior in the Human Female, em 1953. 

O resultado desses estudos, conhecidos como ‘Estudos de Kinsey’, tiveram grande influência na chamada “revolução sexual” desencadeada no início dos anos 60. Esses estudos apontam que 11% da humanidade terão uma sexualidade não convencional em relação aos demais, podendo sentir atração sexual ou expressões de libido que não se encaixam nos padrões propagados pela sociedade, ou ainda, sentirem-se atraídos sexualmente por roupas, objetos ou até mesmo partes do corpo. 

Estamos conscientemente nos afastando da visão médica, filosófica, psicológica e psicanalítica da problematização dos fetiches e, com muito esforço, dando o primeiro passo para reconhecer uma orientação sexual até então problematizada e completamente repudiada pela ciência, certo?

Depois do Kinsey, houveram outros estudiosos que nortearam as pesquisas sobre o comportamento sexual humano, sendo os mais memoráveis: Masters & Johnson e Shere Hite. Todos estes compreendem as práticas fetichistas como compostas por uma atmosfera sexual que representa uma orientação sexual, inclusive defendida e ressaltada pela letra K na atual sigla LGBTQQICAPF2K+ da comunidade ativista

Os contra argumentos:

Faz parte da minha posição como pesquisador apresentar sempre contra argumentos e permitir que você tome seu partido. Apesar de defender que não dá para refutar ciência com achismo, há uma construção bastante pertinente na própria comunidade BDSMer em que defendemos a separação do termo Kinky / Kinkster e Fetish / Fetichista, como mostra nesse vídeo abaixo:

Vídeos como esse são extremamente famosos fora do nosso país. O termo “101” conota “one-by-one” ou “one-o-one“, sendo “um por um“, ou “passo à passo” em uma tradução literal da expressão. Como a Alice Little coloca neste vídeo, o termo Kink estaria relacionado a questões que possuem natureza sexual, enquanto o fetiche estaria ligado às práticas que não possuem natureza sexual.

Por exemplo: As palmadas na bunda já são apresentadas como contextos sexuais, pois a bunda se trata de um atributo sexualizado na nossa cultura, então, o gosto pela dor (denominado masoquismo) faz parte de uma identidade sexual que chamamos de kink, sendo assim, uma pessoa que se reconhece masoquista pode se posicionar socialmente como um Kinky, enquanto pés e sapatos não são objetos sexualizados na nossa cultura, então seriam atributos fetichistas e não com origens sexuais.

Essa linha de pensamento da Alice também é a mesma adotada no glossário da rede social fetlife, onde é apresentado o termo Kinkster como “uma pessoa que não definiu seu papel enquanto experiencia jogos envolvendo hierarquia, role play, sadomasoquismo, travesti e/ou fetiches” e Fetichista como “Uma pessoa que se excita por objetos ou partes não sexuais do corpo”.

Dessa forma fica claro que o termo Kinky (como uma orientação sexual) não poderia ser usado como termo guarda-chuva para abraçar todos os kinksters, BDSMers e os Fetichistas, visto que ele não foi completamente difundido na própria comunidade que o gerou.

Mas há uma outra visão extremamente pertinente e pouco discutida fora do mundo acadêmico. Nessa caminhada de atributos fetichistas, podemos considerar o universo Leather, Latex ou até mesmo Sugar (incluindo babies, Daddies e Mommies), a consequência do fetichismo do mercado apresentado por Marx, não se tratando de uma identidade sexual, mas sim de uma fetichização, como mostra o texto A Dream is a Wish Your Heart Makes: Notes on the Materialization of Sexual Fantasy (Um sonho é um desejo do seu coração: notas sobre a materialização de fantasias sexuais) do Michael Bronski, publicado em 2004 e que a Margot traduziu e publicou aqui.

Fica claro ao longo deste texto brilhante o quanto a sexualidade do Michael foi construída através da iconização de determinados produtos e o poder que esses ícones transmitiram para seu íntimo, de tal forma que sua imagem total fosse transfigurada.

“Lá eu estava, como se acordasse de um sonho. De botas pretas de construção, uma jockstrap úmida, jaqueta preta de couro molhada de suor e o equivalente a horas de outros tipos de fluídos acumulados. Um cinto enrolado em minha mão. De repente, meu ar travou na garganta (na verdade, soou mais como um respiro) enquanto eu deparava com meu reflexo no espelho, através das lentes escuras e brilhantes dos meus óculos de sol. Por um segundo, eu não soube quem era. Assim como Narciso capturado por seu próprio reflexo, eu estava apaixonado, melhor dizendo, em lascívia, com o homem olhando em meus olhos.

A surpresa se perdurou por apenas poucos segundos. Assim que os meus níveis de adrenalina diminuíram e as outras respostas físicas do meu corpo se acalmaram, eu sabia exatamente quem eu era e onde eu estava. Os outros homens a meu redor (incluindo o homem que estava amarrado e amordaçado aos meus pés) estavam absorvidos por suas próprias fantasias e dificilmente notaram a mini-epifania que eu acabara de ter. Voltando a realidade, eu rapidamente reentrei no mundo de frenesi sexual que me rodeava. Mas esse questionamento não deixaria minha mente no dia seguinte ou no próximo: como me tornei minha própria fantasia sexual idealizada? (…) como essa imagem de mim saiu de dentro da minha cabeça (onde suspeito que já estava há muito tempo) e se materializou no mundo real?

(…)

Podemos ser o sedutor, o traidor, o traído, fervilhando de animalismo sexual ou suave e romântico, seduzindo nossa capacidade de amar, em vez de foder completamente alguém. Tiramos nossas imagens de nossas próprias mentes, de revistas, do pornô, de contos de fadas e de filmes.

(…)

Geralmente, somos ensinados a tomar as rédeas de nossas fantasias sexuais; devemos dominá-las porque elas podem fugir de nosso controle. Eles podem, de fato, se tornar realidade. (…) O choque de ver aquele homem no espelho foi o choque do autorreconhecimento. Era o homem dos meus sonhos de infância — o homem esquivo, misterioso, ligeiramente perigoso, porém amoroso, que eu desejava, mas que me sentia inalcançável. 

(…)

Autoimagens sexuais estão em constante mudanças, assim como os objetos de desejo sexual.  

O quanto essa orientação sexual surgiu dele, ou foram construídas pelo mercado no qual ele foi exposto? O quão interessante é para esse Mercado apresentar um poder atribuído por roupas de couro e chicotes, assim como é interessante apresentar uma BMW e não um carro, ou iPhone além de um celular? Relacionar-se com os produtos que foram fetichizados pela mercadoria geram no indivíduo o mesmo sentimento que o fez adquiri-los. O poder que o sujeito atribuiu a esses produtos, agora corre em suas veias porque ele os utiliza, e aqui passamos a não discutir uma nova identidade sexual, mas sim a consequência do desejo do Mercado vivo através do seu praticante.

“A ostensiva presença dessas mercadorias nas cenas fetichistas e sadomasoquistas parece acionar uma forma particular de desejo que transfere as funções e qualidades dos objetos para os sujeitos nelas implicados. Não por acaso, independente da posição ocupada por seus participantes, a maior parte das práticas eróticas aqui examinadas supõe uma efetiva passagem para o ‘Estado de Objeto’ que visa transformar as próprias pessoas em mercadorias desejáveis. Aqui, o fetichismo da mercadoria trava um pacto fundo com o fetichismo sexual, para nos obrigar a reconhecer a singularidade do processo de fabricação, material e imaginário, de um obscuro objeto do desejo.” – disse Eliana Robert Moraes em Prazeres Perigosos, página 11.

E para finalizar essa provocação, encerro com um questionamento: Por que batemos com chicote e não com a havaiana branca? Se abraçarmos essa linha de raciocínio, podemos muito bem correlacionar a cultura do estupro, a qual somos expostos, com o desejo pela vivência do rape play. O quanto deixamos de explorar nossa sexualidade para vivenciar uma performance que nos foi apresentada? Caso essas perguntas tenham te deixado com uma pulguinha atrás da orelha e você queira ir mais fundo nessa discussão, recomendo esses dois artigos acadêmicos (Born this way? Is kink a sexual orientation or a preference? e o Is BDSM a Sexual Orientation or Serious Leisure?)!

Como prometido: a recomendação cinematográfica!

O filme A Pequena Morte (The Little Death, 2014) foi inspirado nesses estudos sobre a sexualidade e apresenta a vida de alguns casais que possuem expressões de libido não convencionais. A manifestação de suas sexualidades não são fruto de traumas, defeitos ou doenças. Na verdade, trata-se de um contexto sexual que simplesmente ‘está’ ali dentro de cada um deles e eles nem sequer sabem que possuem.

Analisando tudo o que venho apresentando até aqui, faz sentido que o BDSM seja um movimento de contracultura sexual para abraçar todas essas sexualidades? Nossas práticas defendem a construção de um espaço para vivê-las de forma saudável e com diálogo claro, algo que faltou bastante entre os casais do filme!

Conclusão:

Particularmente não me afeiçoo com a narrativa acadêmica que não temos uma sexualidade pois estamos reproduzirmos uma performance gerada pelo fetichismo da mercadoria e tão pouco acredito que o termo Kinky não abrace os BDSMers, Kinksters e também Fetichistas. Apesar de considerar justa a abertura para outras narrativas e linhas de pensamento, mantenho-me firme na elaboração de que estamos desfrutando de uma nova narrativa sexual pelo momento histórico-social que estamos inseridos, podendo identificar agora uma orientação sexual presente desde muito antes da história catalogada através da mitologia.

Enfim, como dito, falar de fetiches e sexualidade é sempre um tema complexo e acredito que o melhor caminho para fazê-lo está relacionado à libido, pois tudo precisa fazer sentido aqui dentro e nos levar para o orgasmo. Como prometido aqui, hoje abordei esse tema sobre sexualidade e a construção histórica da palavra fetichismo e calhou da data de recomendação do filme, nada mais pertinente para ampliar essa discussão né? hehehehe

Fico feliz que tenha lido e semana que vem voltarei para conversar sobre duas importantes figuras e um vilão nessa história! Sadismo, Masoquismo e Sadomasoquismo! 

Posso contar com sua leitura?

AUTOR

Mestre Sadic​​​​

​Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.

Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P

Site: https://mestresadic.com.br

Instagram: https://www.instagram.com/mestre_sadic

Fetlife: https://fetlife.com/users/5909606

Medium: https://medium.com/@mestre_sadic​​​

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1 comment

  1. submissa marilys 1 dezembro, 2020 at 01:04 Reply

    Podes contar com minha leitura no próximo texto, Mestre Sadic. E sobre este que acabo de ler só há uma palavra a dizer: sensacional. Parabéns!!
    Até o próximo texto, então.

    Abraço cordial,

    submissa marilys

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