Encontramos exemplos das bases do BDSM, além do SSC, RACK e PRICK, esbarramos em outras letrinhas que compõem esse universo do BDSM. O que de fato é o SSS, CCC, PCRM e RISSCK? Fiz uma investigação para entender a origem de cada um destes e irei te apresentar, me acompanha?
Desde o princípio
Quando falamos em base, estamos falando dos princípios éticos que vão nortear nossa conduta e nossas práticas dentro do BDSM e que estão estritamente ligadas à consensualidade e aos acordos estabelecidos. Com a epidemia da AIDS nos anos 80, os grupos que apoiavam e defendia uma ordem para a liberdade sexual e que militavam a favor do movimento de liberdade sexual se viram no dever de conscientizar sobre os riscos do HIV com seus partners, então o GMSMA (Gay Male SM Activists / Ativistas SM de Gay Masculino) formou um discurso ético e consciente afim de conter a contaminação dentro do Chicago Hellfire Club.
O mote da conscientização adotado foi resumido em um slogan de três palavras na marcha de Washington pela Direitos dos Gays e Lésbicas pelo Contingente S/M — Leather, e pela visibilidade internacional que a Marcha recebeu, o mundo passou a conhecer o Safe, Sane & Consensual (S.S.C.), e expliquei tudo isso aqui.
Nos anos 90, o SSC estava sendo usado para defender uma coisa diferente do que ele foi proposto originalmente, então em 1999, Gary Switch moderniza o SSC trazendo o discurso do RACK, como você pode ver aqui.
Ao longo dos anos 2000, muita gente e empresas entraram no BDSM e, por não compreenderem o SSC e tão pouco o RACK, passaram a defender outros discursos criando então o conceito de BASES (que estamos apresentando agora). Resumindo o SSC e o RACK em uma escolha, defendendo que elas não passam de bases a serem seguidas, desvalida toda a argumentação proposta até aqui e dando abertura para cada um criar a sua própria compreensão de como os jogos devem ser, eis que surge o PRICK, como você viu aqui.
Agora, vamos para as outras bases que são defendidas em nossa comunidade…
RISSCK
Em 2003, Gary Switch deu uma entrevista para a revista The Bottom Line (texto original, e a tradução aqui) e essa foi das perguntas feitas:
“O SSC e o RACK são compatíveis? Qual é a principal diferença entre os dois?
Claro que são compatíveis. Dúvido que qualquer pessoa que diga que é SSC não gostaria de ter consciência dos riscos e duvido que qualquer pessoa que acredite que o RACK descreve com mais precisão seus parâmetros se descreveria como insanas ou inseguras. A diferença é que consciência-dos-riscos tem um sentido mais claro do que são e seguro, que são altamente subjetivos. Quem ouve pressupõe que quando você diz “são e seguro”, esses termos têm o sentido que tem para eles. Aí eles te veem gritando numa cena pesada e eles ficam horrorizados: “Você chama isso de são e seguro?!”.”
Com isso, muita gente passa a entender o RACK como um caminho natural para o SSC, no entanto, a comunidade ainda estava sendo polarizada com a falta de estudo, mas também com o surgimento do PRICK como uma base legal, então a Lady Nichola teve uma brilhante ideia de unificar o SSC e o RACK em um único acrônimo, dando vida em 2006 o termo: Risk Informed, Safe, Sane, Consensual Kink, que seriam Práticas Consensuais, que sejam Sã, Seguras e de Risco Informado!
Lady Nichola foi muito inteligente, pois se propôs em acabar com a discussão entre SSC, RACK e PRICK e seu acrônimo possui uma dualidade e na escrita extremamente interessante, afinal, são todos RISCOS que assumimos, não?!
CCC
Como a internet deu voz para todos os lados do espectro, cada um dia alguém vinha com alguma teoria nova ou queria criticar / questionar algo que já existia. Em 2002, o David Stein era o último da formação original do GMSMA que ainda estava vivo e, como ele que assinava as atas das reuniões do grupo, foi associado em seu nome o prestígio de ter sido o criador do SSC. Consequentemente, teve que rebater todas as críticas ou teorias relacionadas ao mesmo.
Ele fez isso por muitos anos. Muitos anos mesmo! São inúmeras os relatos e discussões virtuais que tiveram a presença do Stein defendendo o que havia idealizado com o SSC e a diferença que as pessoas criaram sobre ele, como o mesmo deixou claro em 2001 em resposta ao Desejo Secreto:
“A partir daquela data a frase ganhou vida própria e nem eu, nem a GMSMA ou qualquer outra pessoa tem, hoje, o controle sobre a maneira como as pessoas a usam ou dela abusam.”
Em uma das conversas de fórum, Stein respondeu em 2002 uma crítica que fizeram a ele e ao GMSMA alegando que o SSC não era um termo original, pois outros grupos até mais antigos já possuíam esse modelo discursivo e promovia as mesmas reflexões.
Stein concordou que os grupos BDSM começaram a se formar a partir de 71 e que a comunidade não nasceu ‘a partir dessa data’ o GMSMA foi fundado em 83, portanto, muitos dos manuais e conceitos não nasceram com o GMSMA, porém, nessa resposta ele colocou três palavras começadas com letra ‘C’ em sequência: Committed, Compassionate, Consensual (sendo algo como: Comprometido, Compassivo, Consensual).
Essa resposta viralizou como uma declaração pública ou uma ‘descoberta’ que o SSC foi inspirado em uma “base chamada CCC”, pelas palavras do próprio.
O autor da acusação se utiliza dessas palavras para formar o texto, no entanto, a resposta do Stein em uni-las deu a entender que essas palavras formavam um novo acrônimo e, consequentemente, uma base plausível.
Existe também uma outra discussão (agora em nível acadêmico) sobre o 4Cs (Cuidado, Comunicação, Consentimento, Cautela, do inglês: Caring, Communication, Consent, and Caution). Sobre essa discussão que parte de uma análise do SSC, RACK e CCC, você irá encontrá-la aqui.
SSS
O SSS é uma base criada aqui no Brasil pelo Klaus, antigo membro da SoMos (primeiro grupo SM nacional, criado em 92 pela Bárbara Reine em São Paulo).
SSS significa “São, Seguro e Sensual“, pois segundo o próprio criador, o termo consensual estava “deturpando” o SM, pois o Dominador teria que acatar os gostos da parte dominada.
Em setembro de 2020, quando conversei com o Klaus para entender o que ele queria dizer com o SSS, ele me respondeu que “as coisas existem dentro de um contexto. Na época se confundiu muito consenso com consentimento. E se vivia a relação S&M com uma peça de teatro onde tudo estava num script. Eu dizia então que tínhamos que ir para o são, seguro e sensual, onde o sensual era o senso comum da sexualidade como um sentido e não o consentimento (…) Eu tenho sempre uma preocupação quando se fala no SSC porque as pessoas confundem consenso com consentimento. Consensual, na minha visão, tem a ver com senso comum, vontade comum. Acho que alguns querem mudar para o bottom ter que concordar a cada momento e transformam o SM numa pantomima”.
Pelas palavras do Klaus, podemos entender exatamente ao que se referia. Entendemos que pelo momento em que o termo foi criado, não havia conteúdo do SSC traduzido para o nosso idioma. Até hoje ocorre que quando pesquisamos por textos em inglês, encontramos termos que fazem parte do vocabulário daquele grupo ou região, a tradução literal dará um outro sentido para o que de fato está sendo proposto, então precisamos adaptar sentidos para que faça sentido para nossa realidade, assim sendo, se hoje já é assim, imagina no começo do século XXI? Quando o termo SSC chega aqui no Brasil e foi traduzido para “São, Seguro e Consensual”, partimos para o entendimento paulista de cada uma das palavras do acrônimo, o que deu abertura para interpretações posteriores, como a do Klaus.
PCRM
Também no cenário nacional surgiu o PCRM em 2016 no Facebook.
Eu sei que falar o ano e o nome da rede social é totalmente impreciso e não serve como evidência, mas em todas as minhas pesquisas o rastro mais antigo que encontrei foi neste ano. Não consegui encontrar se nasceu em uma página ou em um grupo do facebook, pois mais de uma página replicou o mesmo texto ou modificou algumas palavras para parecer de própria autoria, dessa forma ficou impossível determinar quem criou e tão pouco onde nasceu o termo dentro do Facebook.
PCRM significa “Prática Consensual com Riscos Minimizados” e tudo leva a crer que surgiu em uma tentativa de traduzir e explicar o RACK.
Em outras palavras, RACK significa Práticas Consensuais com Consciência dos Riscos, o que levaria para uma versão BR algo como PCCR. O autor do PCRM descreve justamente o RACK e acrescentou que, ao ter consciência dos riscos, deveríamos diminuí-los através do estudo ou de algum método de segurança, que é justamente o que o Gary Switch reforçou inúmeras vezes.
RACK é o termo ainda no original, enquanto PCRM é a tradução para o nosso idioma.
Conclusão
Nós percebemos que essa sopa de letrinha se deu pela má compreensão entre SSC e o RACK. É importante entendermos que os termos evoluem e nossa comunidade abraça novos conceitos pois os anteriores não se fazem mais necessários.
Na ciência, a teoria do big bang era tese cosmológica dominante sobre o desenvolvimento do nosso universo, no entanto, essa linha de pensamento progrediu e não é mais adotada em absoluto, dando espaço para a atual construção: teoria das cordas. Veja que nesse caso uma não anula a outra, mas os avanços e pesquisas sobre uma deu espaço para uma teoria maior que abrigasse ambas.
Ainda nesse mesmo exemplo, a comunidade usava o nome GLS, e hoje esse termo caiu em desuso e surgiu o LGBTQIA+, no BDSM não seria diferente, visto que alguns termos foram substituídos por outros (aqui no Brasil de Inversão para Pegging).
Compreenda a evolução na utilização dos termos que estão atrelados à conscientização maior sobre o que está sendo praticado ou discutido. O discurso da ética existia na comunidade e foi sintetizado no jargão “S.S.C.” e que, consequentemente, pode ter aberto a discussão sobre a definição das práticas dentro do BDSM, no entanto, quando Switch propõe o novo termo, ele não cria uma segunda versão, mas sim um complemento para o primeiro, uma continuidade.
Nós não podemos optar entre seguirmos a teoria das cordas ou a teoria do big bang, tão pouco decidir chamar a comunidade de GLS ao invés de LGBTQIA+ (ou só LGBT), por que com o RACK e SSC fazemos o mesmo?
O RACK é a continuação lógica e atualizada do que o SSC nasceu para dizer e responde contrário ao que veio sendo defendido.
Essa compreensão de SSC e RACK sendo passíveis de escolha deu margem para outras 6 siglas (as catalogadas aqui).
Retomo para as palavras do próprio Gary Switch para encerrar minha defesa:
“vamos dispensar os acrônimos todos, uma opinião partilhada por David Stein, (…) Eu concordo com ele que esses termos acabam sendo substitutos para a reflexão. Então, fiquemos como ‘adultos que estão consentindo‘.”
AUTOR
Mestre Sadic
Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.
Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P
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Respostas de 3
Perfeito! Acho super importante ter conhecimento dos fatos históricos e da evolução dentro do BDSM (e fora também, é claro). Bases teóricas fortalecem as práticas, sempre. Mas ficar presos a siglas, como citado, acaba sendo uma fuga e uma forma de tornar tudo muito simplista. Adultos conscientes pensam!
Perfeito! Sensacional!
Muito conhecimento sobre as bases, as nomenclaturas e tudo que envolveu as mudanças em um conceito histórico. Temos evoluções a cada momento e instante, basta nos adaptarmos e compreender tudo. Claro com consciência, assim como a frase final.
Obrigado ao Mestre Sádic por esse artigo e ao Dom Barbudo, por compartilhar com nosso este conhecimento em seu site. Gratidão
Obrigado pelo seu comentário!!