Na semana passada falamos sobre o desenvolvimento do termo PRICK e já abordamos aqui a construção do termo RACK no BDSM. Vamos continuar esse assunto falando sobre a origem de tudo, o Safe, Sane and Consensual (SSC). Vale ressaltar que produzi esse texto no Medium, mas estou trazendo minha pesquisa sobre o tema para esse site para complementar a discussão e fechar esse assunto.
Me acompanha?
O que é ética?
Toda vez que converso com algum praticante percebo que o senso ético ainda não é unânime. Aliás, se a ética não é largamente discutida e ensinada nos gumes familiares, como eu poderei esperar que ela seja exercida quando estamos falando de um subgrupo que defende uma contracultura?
Pois bem, para que todos fiquemos na mesma página: ética é uma área da filosofia que busca problematizar as questões relativas aos costumes e à moral de uma sociedade, sem recorrer ao senso comum. A ética tenta estabelecer, de maneira moderada e com uma visão questionadora, o que é o certo e o errado e a linha, muitas vezes tênue, entre o bem e o mal. A ética está intimamente ligada à moral e consiste numa importante ferramenta para o bom convívio entre as pessoas, para o bom funcionamento das relações e das instituições sociais.
Para ficar um pouco mais claro, o idioma grego antigo possuía duas palavras de grafias e significados similares: éthos, que significa hábito ou costume, e êthos, que significa caráter, disposição individual e inclinação.
A palavra mores, de origem latina, era apenas uma tradução para as palavras derivadas de ethos, significando também hábito ou costume.
O latim não diferenciava os costumes do caráter em sua tradução, o que causou uma confusão posterior: muitos estudiosos consideram ética e moral a mesma coisa. No entanto, a distinção que parece explicar a diferença entre os termos da melhor maneira é a seguinte: moral é o hábito e o costume, enquanto ética é uma filosofia da moral, uma tentativa de fazer uma “ciência” moral.
Enquanto a moral expressa os hábitos e costumes de uma sociedade, de um local, de uma comunidade situada no espaço e no tempo, além de designar a conduta individual de pessoas, a ética é aquela que tenta identificar, tratar, selecionar e estudar a moral (ou as várias morais) de maneira imparcial, laica, racional e organizada. É papel da ética, portanto, entender a moral e julgá-la pelo crivo da razão, estabelecendo se ela está correta ou não. Para aprofundar-se mais nessa questão, eu recomendo uma leitura precisa do professor Pedro Menezes neste artigo sobre ética.
Portanto, se a ética é a construção do pensamento coletivo que determina o que é certo e errado e nos norteia por um viés aceitável, então quando estamos falando de grupos marginalizados, precisamos estabelecer novos conceitos éticos de convívio.
Precisamos de um lugar para praticar sem culpa!
Como dito aqui, a palavra fetiche foi cunhada através da visão colonizadora e castradora que determinava toda e qualquer prática como algo errado para a cultura do observador. Logo, o termo vem sendo lapidado com o passar dos anos com um peso moral no errado, portanto, indiscutivelmente, já está intrínseco em nossa sociedade que estes prazeres (sejam quais forem) estão nadando em um espaço que confronta o correto (aquilo que é normalmente aceito).
A palavra fetish entrou no dicionário inglês em 1613, fetishism em 1801, e em 1886, ambas as palavras viraram sinônimos de perversões e patologias sexuais na língua inglesa. Ao contrário dessa linha de raciocínio, a palavra Kink (nó ou torção) veio do alemão para o inglês em 1697, mas só recentemente (século XX) está sendo usada para definir manias e preferências sexuais numa tentativa de se desassociar da compreensão social do termo fetish e fetishism, a fim de descrever os prazeres sexuais como uma variável ou conduta sexual, e não uma doença.
Nos anos 60 ficaram populares festas clandestinas para promover uma liberdade sexual que fosse de encontro ao status quo nos Estados Unidos. Sem dúvida, a mais famosa foi “As Catacumbas” e você pode ler um pouco mais sobre ela aqui. A maior parte dos frequentadores buscavam o mundo dos prazeres como uma forma de sair de sua realidade ou de encontrar um amparo visto que lá fora se sentiam completamente errados por ter os gostos que tinham. Foi sob essa ótica extremamente delicada e pouco discutida que surgiram os primeiros grupos que organizaram o que chamaríamos no futuro de BDSM, como um grupo-de-apoio-social dizendo: “calma, eu te entendo, nós também temos prazeres em comum, nós sabemos que você está perdido e nós também estávamos, você encontrou uma nova família aqui e vamos cuidar de você”.
Imagine-se sendo um americano nos anos 50 e você está arrasado (ou arrasada) por não ser igual a todo mundo e por não se reconhecer no modelo de homem patriota ou no modelo de mulher dócil, vulnerável e sem vontade própria. O fato de você não se reconhecer te frustra e eu sei que essa narrativa é extremamente comum, no entanto, agora estamos falando de algo completamente ligado à sua intimidade sexual e como não somos acostumados a conversar sobre isso facilmente, esse sentimento de ‘viver fora da caixinha’ fica rondando sua cabeça.
Como disse aqui, na fisiologia sexual, quando não damos vazão para nossa libido (os gostos sexuais), passamos a sofrer de frigidez e muitas outras doenças, incluindo as mentais e as psicossomáticas, como, por exemplo, a depressão. E, complementando essa narrativa, a taxa de suicídio americana aumentou 33% desde a segunda guerra.
Em dezembro de 1970 a revista estadunidense Screw publicou o seguinte anúncio:
“Masoquista? Feliz? Isso tem cura? A psiquiatria ajuda? Será que existe um estilo de vida satisfatório? Existe aqui a liberdade feminina, a liberdade negra, a liberdade gay. Não é hora de fazermos algo juntos?”
Em janeiro de 1971 nasceu a The Eulenspiegel Society (TES), em Nova Iorque, em 1974 a Society of Janus, em São Francisco na Califórnia, em 1978 surgiu a SAMOIS, entre outros grupos que tinham o propósito de educar e apoiar os kinkys.
Safe, Sane & Consensual
No senso comum de nosso idioma, falar de fetiches seria falar sobre tudo isso, absolutamente tudo, inclusive coisas que hoje nós consideramos crimes. Durante muitos anos (e infelizmente é até hoje), falar de promiscuidade, liberdade sexual, sexo ou fetiches sempre nos trouxe um ar de ‘ambiente sem regras’, então, o mesmo movimento de contracultura que levou à criação desses espaços na sociedade para praticar, agora precisaria impor algumas regras de convívio para evitar maiores problemas.
Cada local tinha sua própria conduta e impunha suas próprias regras de certo e errado, como, por exemplo, clubes que para entrar, você teria que ser convidado por alguém de dentro ou teria que ir vestido com roupas específicas (dress-code).
No entanto, existe até hoje um clube em Chicago chamado Chicago Hellfire Club, fundado em 1971, que foi o primeiro bar declaradamente gay e leather em Chicago. O aumento da epidemia da AIDS fez crescer a discussão e o debate acerca do tema e, com isso, três membros do Hellfire Club (Martin Berkenwald, Bob Gillespie e David Stein) fundaram o GMSMA (Gay Male SM Activists / Ativistas SM de Gay Masculino), atualmente NCSF (National Coalition for Sexual Freedom), com o intuito de definir algumas regras para os praticantes do SM dentro do Chicago Hellfire Club.
Através de narrativas sobre sanidade, segurança e consentimento, o GMSMA passa a discutir sobre ética entre os praticantes fetichistas, enquanto o bar passa a definir as regras de convívio, e, dessa forma, o termo ganha uma promoção além da esperada.
Em 2000, o David Stein tornou pública a origem do termo, e em 23 de fevereiro de 2001, o próprio Stein respondeu a uma menção honrosa para o blog brasileiro Desejo Secreto. O conteúdo do blog (2001 à 2011) foi compilado e está disponível.
“Desculpe-me por demorar tanto em responder, mas estive intensamente ocupado. Não sei exatamente o que você quer dizer com “ser o responsável pela conceituação do SSC”. Na verdade, sou mais conhecido por ser “o que cunhou a frase SM são, seguro e consensual”. Isto foi nos idos de 1983, quando eu fazia parte do comitê que rascunhou o manifesto que continha os propósitos da nossa organização Gay Male S/M Activists (GMSMA) (…) Desde então, a GMSMA usa essa frase de maneira contínua em seu material educacional, mas o conceito não se espalhou, até 1987, quando uma versão reduzida da frase — são, seguro e consensual — foi usada durante a Marcha de Washington pelos Direitos dos Gays e Lésbicas pelo Contingente S/M — Leather, um grupo que a GMSMA ajudou a organizar.
A partir daquela data a frase ganhou vida própria e nem eu, nem a GMSMA ou qualquer outra pessoa tem, hoje, o controle sobre a maneira como as pessoas a usam ou dela abusam.
O objetivo original da frase era conseguir, de maneira clara e sumária, mostrar a diferença entre o tipo de atividade S/M para o qual o GMSMA tinha sido criado e defendia, do outro modelo, predatório, autodestrutivo e até criminal que a mídia tendia a mostrar sempre que “sadismo” e “masoquismo” eram citados. A intenção não foi padronizar um comportamento para o SM “bom”, mas sim criar um mínimo de regras para um SM ético.
Não existem dúvidas de que o são, seguro e consensual ajudou muitas pessoas a se sentirem mais confortáveis em aceitar os desejos e fantasias SM, tanto em relação a si mesmos como em relação aos outros. Ao mesmo tempo, temos que reconhecer que cada um dos três termos é vago e pode dar abrigo a uma série bem grande de atividades.
Devemos, enquanto comunidade, desenvolver um grande trabalho no sentido de definir bem esses termos, antes de nos sentirmos seguros de que essas palavras tenham o mesmo significado para a maioria das pessoas. Além disso, esses termos também são relativos, dependendo das circunstâncias. Portanto, o que é “seguro” ou “são” para uma pessoa ou grupo pode não ser para outras pessoas.
Existe hoje em dia, infelizmente, uma tendência em usar o SSC como um litmus test ou um selo de aprovação, o que pode ser muito perigoso em termos de dividir a comunidade, cada lado querendo a pele do outro (a garganta seria melhor…). Existem momentos em que até fico triste por ter cunhado essa frase. Mas, como já disse antes, o fato está fora do meu controle agora.” — Página 114 e 115.
Como você viu, em 1987 o slogan “Safe, Sane and Consensual” era usado para discutir aceitação dentro da marcha em Washington pelos Direitos dos Gays e Lésbicas, e com isso o GMSMA e outros grupos auxiliaram a criar o NCSF que até hoje tem como objetivo se manter ativo nessa resistência a favor da liberdade sexual. No entanto, o slogan ganhou tamanha força que passou a ser encarado como regra moral para participar da comunidade BDSM, saindo da discussão ética e norteadora, pois essa ficou em segundo plano.
Conclusão:
Como vimos nesse texto sobre o RACK, Gary Switch puxa novamente a discussão ética para os debates internos sobre o BDSM. Um pensamento que defendo muito é que o SSC e o RACK estão falando as mesmas coisas, inclusive, esse é o pensamento dos próprios autores.
Tanto Gary quanto Stein usaram de uma terminologia para expor a ideia de que o que temos que ter em mente ao praticar BDSM é sermos éticos em nosso comportamento, agir com responsabilidade com os parceiros e conosco e minimizar ao máximo os riscos das atividades que nos propomos a fazer.
Porém, em um determinado momento, as pessoas passam a preocupar-se mais em criar novas sopas de letrinhas em vez de discutir e praticar o que realmente deveria pautar suas atividades, o que finda por gerar um desequilíbrio na comunidade.
Portanto, cabe a nós em vez de segregarmos uns aos outros através de uma classificação, onde um pratica SSC, RACK, PRICK, etc, nos unirmos em prol de um BDSM que defende a liberdade de expressão sexual pautada em consensualidade, empatia, ética e responsabilidade entre as partes.
AUTOR
Mestre Sadic
Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.
Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P
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Uma resposta
Muito bom! Curiosamente, à medida em que eu lia o texto ia pensando… pra que tantas definições, tantas siglas, se todos somos tão plurais e diversos… não seria mais fácil nos concentrarmos em práticas baseadas no diálogo, consenso, empatia? De nada adianta um monte de definições que acabam por ser esquecidas e distorcidas. E qual não foi minha surpresa ao ler os últimos dois parágrafos e ver que a conclusão do Mestre Sadic foi exatamente a mesma que a minha? Fico feliz em saber que há pessoas que têm profundo conhecimento sobre o BDSM e que pensam da mesma forma que eu.
Aliás, respeito, empatia e ética (por mais que haja diversas interpretações distorcidas para o que é ético atualmente) devem pautar todas as relações humanas, não só dentro do BDSM.