Antes de começarmos, saliento que este texto aborda o meu entendimento (que pode ser diferente do entendimento comum da Comunidade) sobre os termos aqui explorados.
Quando o assunto é BDSM, escutamos frequentemente as pessoas dizendo que não é sobre sexo e sim sobre troca de poder. Nesse sentido, costuma-se fazer uma diferenciação sobre quais os tipos de relacionamento possíveis dentro de uma dinâmica BDSM e, para tanto, adotam-se as siglas EPE (Erotic Power Exchange), PPE (Partial Power Exchange) e TPE (Total Power Exchange). No entanto, a origem desses termos não tinha o intuito de enquadrar os praticantes em caixinhas e eu gostaria de contar essa história pra vocês. Me acompanha?
Até os anos 70
A Segunda Guerra Mundial durou 6 anos (1 de setembro de 1939 à 2 de setembro de 1945) e deixou uma série de cicatrizes ao redor do globo. Enfatizando o cenário americano dos anos 40, por exemplo, havia por consequência da guerra uma forma idealizada de como deveríamos ser. Para fins organizacionais e patrióticos, foi introjetado goela abaixo o modelo de homem, mulher e família e, como consequência desse processo após o término da guerra, a taxa de suicídio americana aumentou 33% desde a segunda guerra.
Os números gritam uma inadequação do indivíduo com o senso comum que lhe foi apresentado. Algumas pessoas conseguem relevar, outras não.
Para piorar, em 1952 foi publicado pela Associação Americana de Psiquiatria o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). O manual contém 130 páginas, que mostram 106 categorias de desordens mentais. O DSM-II foi publicado em 1968, listando 182 desordens em 134 páginas. Esses manuais refletiam a predominância da psicodinâmica psiquiátrica, portanto, para qualquer cidadão americano que se percebia com sexualidade diferente, provavelmente seria taxado com alguma das desordens apresentadas. Havia dentro do DSM uma ênfase no comportamento doentio e depressivo relacionado a quem se alinhasse com essas práticas apresentadas hoje no BDSM (transtorno de personalidade masoquista e transtorno de personalidade sádica).
Então, ao longo dos anos 60, ainda havia muita pressão para que as pessoas se enquadrassem no modelo de família conservadora e tradicional e, se por algum motivo, as pessoas se identificassem de forma diferente do que era tradicionalmente aceito, poderia ser percebido como portador de alguma doença. Esse foi o plano de fundo necessário para uma série de movimentos de inclusão e aceitação, pois pessoas que se reconheciam com uma expressão sexual não convencional, se reuniram, na medida do possível, em locais que promovessem essa inclusão e conversavam entre si.
Alguém para falar: “calma, você não está errado e nem doente, o errado é o sistema, não você!”.
Em janeiro de 1971 nasceu a The Eulenspiegel Society (TES), em Nova Iorque, a primeira organização política voltada para o SM que visava formar um grupo de apoio para os masoquistas, de forma que eles pudessem se aceitar e encontrar parceiros para seus prazeres. Alguns anos depois, em 1974, em São Francisco na Califórnia, foi criada a Society of Janus e, mais tarde, em 1978 surgiu a SAMOIS, entre outros grupos que tinham o propósito de educar e apoiar os praticantes.
Diferentemente do que ocorria nos Estados Unidos, o Brasil estava imerso em um momento de ditadura militar (1 de abril de 1964 a 15 de março de 1985), então, obviamente, os contextos políticos e os debates travados nesses dois países não eram os mesmos. No entanto, isso não impediu que os discursos dos EUA chegassem ao Brasil.
Ainda no começo dos anos 70, aqui em território nacional surgiu a revista Club dos Homens, que marcou a estreia da Wilma Azevedo, como narrei aqui no texto sobre a história do BDSM no Brasil.
Os anos 80
Nesse período, a censura ainda era forte no Brasil, mas a revista Club dos Homens vinha crescendo em número de leitores, apesar de ser, distribuída apenas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Mesmo não sendo fácil de encontrar a revista nas boutiques eróticas e bancas de jornais dessas cidades, o número de vendas manteve-se alto o suficiente para sobreviver à repressão.
O maior sucesso da coluna da Wilma Azevedo sobre sadomasoquismo na revista se dava pelas cartas que os leitores enviavam narrando suas vivências. Há cartas que enfatizavam o prazer da esposa em apanhar do seu esposo por ela não abotoar todos botões da camisa deixando o busto à mostra. Cartas que a infidelidade do marido é justificável por ele ser ‘um homem‘ e isso incomodava a esposa, mas passou a aceitar justamente por se reconhecer masoquista e amá-lo demais. Há histórias de homens solteiros e casados com relatos estereotipados de servilidade relacionados a aspectos femininos, enfim. Esse foi o primeiro contato, em nosso idioma, que nós tivemos com o sadomasoquismo.
Nesse mesmo período ocorreu a epidemia da AIDS e todos os veículos falavam sobre isso, exceto a Club dos Homens. Posso tentar elaborar uma série de razões para, que em quase mil edições, não tenha havido nenhuma menção sobre sexo seguro ou sobre consentimento na relação. Talvez porque o pensamento de que apenas gays teriam AIDS e, então, esse não era o público da revista? Bom, como não houve nenhuma carta ou relato de um sadomasoquista homossexual em toda a revista, acho que já temos uma resposta.
Ao ler as edições da revista ou os contos que a Wilma Azevedo separou em seus livros fica claro que SM é um jogo erótico vivido no fórum íntimo do casal heterossexual.
Em 1983, o escravo da Wilma Azevedo, COSAM, tenta fundar no Brasil a Associação Brasileira dos Sadomasoquistas (ABS) com o objetivo de unir os praticantes, enquanto no mesmo ano, em Chicago estava se formando o GMSMA (Gay Male SM Activists / Ativistas SM de Gay Masculino) com o intuito de proteger os praticantes de SM do Chicago Hellfire Club da epidemia e também de estimular práticas éticas e não predatórias, associadas a doenças e transtornos mentais, como a mídia insistia em dizer com respaldo do DSM (o manual que citei acima).
A origem do termo ‘Power Exchange’
Como mencionei no início, o modelo adotado pelos Estados Unidos na defesa do patriotismo americano teve sequelas na sociedade, intensificando a noção de PODER exercida pelo Estado.
O Estado, o sistema e suas construções sociais sustentam e delimitam quem você é e o que não é. As coisas só existem se fazem parte dessa macroestrutura, portanto, nós não podemos não existir sob a influência desse poder, mas podemos tentar trocar os papéis dele.
O termo Power Exchange surge para descrever toda e qualquer transgressão do indivíduo com o sistema. No início dos anos 50, era uma expressão usada pensando nessa ótica que iria vir a ser contracultural. Com a popularização do termo, essa ideia de transgressão ficou associada apenas no campo sexual, visto que ainda havia uma moralidade no cunho sexual, por exemplo, por ser errado e amoral ser dono de uma casa de swing, algumas casas de swing e bares que promoviam ideologias contra o sistema usam o nome power exchange.
Construtivamente, o termo Power Exchange caminha para o âmbito sexual, ainda nessa questão com o Estado, mas agora passa a ser empregado totalmente no SM, transgredindo o termo e criando a concepção erótica da troca de poder, onde, pelo sexo, iremos realizar um jogo teatral em que um dos indivíduos representa o Estado (sendo um algoz, um agente carcerário, ou um policial, militar, enfim) e o outro a vítima que não possui esse poder que apenas o Estado detém, como apresentou Anne McClintock em seu ensaio chamado Maid to order. Commercial SM and gender power de 1993.
“Em contraste com o sadismo desenfreado, no entanto, S/M consensual e comercial é menos uma falha biológica ou variante patológica da agressão masculina “natural” e da passividade feminina “natural” do que uma subcultura histórica que surgiu na Europa ao lado do Iluminismo imperial. Longe de ser uma manifestação primordial de “degeneração” racial, S/M é uma subcultura organizada principalmente em torno do exercício simbólico do risco social. Na verdade, o ultraje de S/M é precisamente sua hostilidade à ideia da natureza como guardiã do poder social: O S/M se recusa a interpretar o poder como algo relacionado ao destino ou de cunho inevitável. Visto que S/M é o exercício teatral da contradição social, é auto conscientemente contra a natureza, não no sentido de que viola a lei natural, mas no sentido de que nega a existência da lei natural em primeiro lugar. S/M desempenha o poder social como contingente e constitutivo, não sancionado nem pelo destino nem por Deus, mas pela convenção social e invenção e, portanto, como aberto à mudança histórica. O S/M consensual insiste em exibir o “primitivo” (escravo, bebê, mulher) como personagem do tempo histórico da modernidade. O S/M encena o “primitivo irracional” como um roteiro dramático, uma performance comunal no coração da razão ocidental. A parafernália do S/M (botas, chicotes, correntes, uniformes) é a parafernália do poder estatal, castigo público convertido em prazer privado. S/M joga o poder social para trás, visivelmente encenando a hierarquia, a diferença e o poder, o irracional, o êxtase e a alienação do corpo como estando no centro da razão ocidental, revelando assim a lógica imperial do individualismo, mas também irreverentemente recusando-a como destino. S/M manipula os signos do poder para recusar sua legitimidade como natureza.” (página 91)
Quando você se torna dono de um escravo ou uma escrava, o que você está fazendo? E quando você se torna um Rei e possui súditos dentro de uma dinâmica SM? E quando você vira um policial ou um membro do exército e aplica uma disciplina severa? Em cada uma dessas situações, com quem você está trocando o poder? Com o Estado! Estamos performando o poder que o Estado exerce em nossas vidas.
São Paulo & Nova Iorque
“Conheci clubes em Nova York, com isso me aprofundando bem nas pesquisas, e hoje posso dizer que tudo me foi proveitoso.” (página 12) e “Visitei alguns clubes em Nova York em 1987.” (página 151). No final dos anos 80, Wilma Azevedo viaja para Nova Iorque, como retratou nas páginas do livro Sadomasoquismo Sem Medo (1998).
Eu quero dar ênfase ao ano, pois também foi em 1987 que o DSM-III-R foi publicado como uma revisão do DSM-III, sob a direção de Robert Spitzer. Nessa revisão as categorias foram renomeadas, reorganizadas e significativamente mudadas do critério em que foram criadas. Dessa forma, o transtorno de personalidade sádica e o transtorno de personalidade masoquista foram removidos do manual, descaracterizando-os como doenças.
Mas qual o ponto? Ao longo dos anos 80 havia também em Nova Iorque um movimento que visava desassociar as nossas práticas da patologia médica. Os praticantes nova iorquinos não se reconheciam mais como “SMer” ou “Sadomasoquistas”, e passaram a defender o uso do termo “Erotic Power Exchange” (EPE) como nome das suas práticas.
Como apresentam Darren Langdridge e Trevor Butt no artigo científico entitulado The erotic construction of power exchange:
“O tema discursivo relacionado à troca de poder erótico (EPE) serve para construir uma identidade sexual distanciada do discurso médico-patológico percebido do sadomasoquismo, mas não de identidades sadomasoquistas mais amplas” (…) “Podemos ver uma tentativa explícita de membros dessa comunidade de se distanciarem do discurso S&M dominante a fim de evitar o que é percebido como estereótipo incorreto e rótulos confusos para suas práticas sexuais.” (…) “Uma qualidade fundamental da troca de poder erótico em toda prática sadomasoquista é a maneira dinâmica como o poder pode ser empregado. Os praticantes usam o poder de forma criativa em seus relacionamentos para realizar uma ampla variedade de objetivos sexuais e emocionais. Os membros das comunidades EPE estão altamente conscientes de que a negociação é a chave para demarcar o jogo erótico consensual do abuso. O papel da contratação explícita no jogo de poder é crucial e reconhecido como tal nessas comunidades.” (…) “No entanto, S&M e BDSM permanecem os rótulos dominantes para identidades e práticas sexuais que explicitamente envolvem poder e dor e EPE representa uma voz minoritária. É uma minoria crescente, entretanto, e representa uma tentativa de trazer um termo guarda-chuva para a vasta gama de jogos de poder sadomasoquistas que podem subjugar todas as identidades anteriores. A EPE foi claramente prefigurada pela mudança de S&M para BDSM”
Perceba que em 1971, quando a Pat Bond forma o TES como um grupo de apoio aos masoquistas, ela visa aceitação pessoal e social sobre aqueles que assim se identificam, portanto, como tanto a mídia quanto os manuais médicos reforçam que os praticantes eram doentes, os praticantes não deveriam partir dessa compreensão de que seus gostos estão associados a transtornos. Desse modo, mudar o nome da comunidade de SM para EPE seria, então, a forma sensata de distanciar o que praticamos com os termos usados na psiquiatria, psicologia e psicanálise, entre outros.
Durante os anos 90, Wilma sai da Club dos Homens e se dedica a escrever livros sobre o universo sadomasoquista, dar palestras e compilar suas vivências tornando-se, então, uma autoridade nacional no assunto. Ao publicar o livro Sadomasoquismo Sem Medo, em 1998, ela cita pela primeira vez essa diferença entre os jogos SM de forma patológica e os jogos SM de forma erótica (página 9):
“S.M. = Sadomasoquismo: pessoas que gostam tanto do Sadismo como do Masoquismo.
S.M.E. = Sado-Masoquismo-Erótico: pessoas que se excitam eroticamente, ao praticarem sadismo ou masoquismo sensual, mas respeitam os limites, as fantasias e os desejos do parceiro.
S.M.M. = Sado-Masoquismo-Maldoso: pessoas que praticam maldades e requintes cruéis de sadismo, durante o ato sexual, ou não, excitando-se, ou não, sem sentir qualquer vestígio de compaixão.
S.M.P. = Sado-Masoquismo-Psicopático: pessoas doentes, com personalidades deformadas, que praticam atos desumanos, desrespeitando direitos e regras da sociedade, chegando à criminalidade.
S.E. = Sádico-Erótico: pessoas que gostam de praticar o ato sexual com mais vigor, sentindo prazer, tendo ereção e chegando ao orgasmo, quando se sentem dominantes. Mas tudo com equilíbrio e respeito.
M.C. = Masoquista-Compulsivo: quem não consegue dominar o impulso de sofrer dores ou humilhações, tornando reais suas fantasias de sofrer e ser humilhado, às vezes se autocastigando.
M.M. = Masoquista-Moral, ou M.A. = Masoquista-Alienado: é o indivíduo levado a sofrimentos impostos pela sociedade ou qualquer regra que lhe seja imputada. Essas pessoas desejam sofrer para serem punidas (geralmente sem terem feito nada de anormal, apenas para se sentirem purificadas e redimidas), excitam-se ao se verem maltratadas, entregando-se até a desconhecidos, sem nem imaginar quais as consequências de seus atos.
M.E. = Masoquista-Erótico: para explicar este tipo de comportamento, foi preciso muitos capítulos, desta obra!”
Perceba a relação íntima das siglas criadas por Wilma Azevedo neste livro com aquilo que ela teve contato nos bares e clubes nova iorquinos. Ela reconhece a separação das práticas com o modelo discursivo médico, mas não abandona o ponto principal que a comunidade abordava, que é a exclusão dos termos “Sádico“, “Masoquista” e “Sadomasoquismo“.
Do EPE pro BDSM
Em 1987, o DSM abandonou os transtornos de personalidade sádica e masoquista, mas esses termos ainda estavam no senso comum dos praticantes, por mais que houvessem esforços para remover essa compreensão entre os adeptos, caminhando para um nome popular que abdicasse de qualquer transtorno, a sigla “B.D.S.M.” (contendo então Sadismo e Masoquismo em sua concepção) não veio como uma proposta do TES ou de qualquer outra organização que visava organizar e conscientizar as práticas e se distanciar do discurso médico. O termo BDSM surgiu na internet, em 1991 em um grupo de discussão sobre o sexo alternativo chamado alt.sex.bondage.
O termo ‘BDSM’ se popularizou mais rápido do que o termo EPE e ele acabou engolindo o seu antecessor, mas herdando seus modelos práticos. Há sim uma tentativa consciente de que o termo EPE volte a sobrepor o BDSM, como apresentado ali acima no estudo da comunidade pelo Darren Langdridge e Trevor Butt no The erotic construction of power exchange:
“No entanto, S&M e BDSM permanecem os rótulos dominantes para identidades e práticas sexuais que explicitamente envolvem poder e dor e EPE representa uma voz minoritária. É uma minoria crescente, entretanto, e representa uma tentativa de trazer um termo guarda-chuva para a vasta gama de jogos de poder sadomasoquistas que podem subjugar todas as identidades anteriores. A EPE foi claramente prefigurada pela mudança de S&M para BDSM”
O termo EPE, que era usado para descrever a comunidade que hoje chamamos de BDSM caiu em desuso pela maioria, mas ainda possui alguns fortes adeptos e justamente por existir esses defensores que construiu um equívoco semântico que possibilitou a construção dos outros dois termos, o Total Power Exchange (TPE) e Partial Power Exchange (PPE).
Erotic Power Exchange (EPE), Total Power Exchange (TPE) e Partial Power Exchange (PPE)
Quando BDSM passa a ser considerado pela maioria o nome do movimento, aqueles que ainda se posicionam como praticantes de EPE e não de BDSM passaram a não ser vistos como diferentes.
Na tentativa de elucidar pro neófito que, tudo o que vivemos dentro do BDSM e do EPE, é a mesma coisa, esbarramos em duas amarras do senso comum. A primeira é que a pessoa se identifica verdadeiramente como um dominante ou submisso e não reconhece que o poder só faz parte de um jogo consentido, e a segunda é que nada do que é vivido tem alguma relação com o sexo.
O discurso higienista de que o BDSM se trata de algo muito maior do que o sexo parte da compreensão de que o sexo se trata unicamente de penetração, portanto, nem sempre há penetração nas práticas, então “não há sexo“. Esse discurso é muito presente na nossa comunidade e existe esforços para que primeiros expliquemos que sexo é muito mais do que nos ensinaram e que as genitais não precisam ser estimuladas para que você chegue ao orgasmo.
Vou me apoiar no ensaio da Margot, publicado em seu Medium chamado Tem um pentelho no meu chicote: a higienização do sexo BDSM, para abordar a narrativa dessa construção entre EPE, TPE e PPE.
“A noção de que BDSM não é sobre sexo advém da intenção de tornar tudo aquilo que é ligado a sexualidade o mais estéril e higiênico o possível. Em uma sociedade em que tudo que é ligado a sexualidades não-normativas é depravado, indecente, imoral e doentio, tentar afastar o BDSM disso, parece uma saída lógica: BDSM não seria sobre sexo, desejo, vontade, tesão, prazer, gozo; seria sobre entrega, respeito, responsabilidade, compromisso. Não é sobre depravação, indecência, imoralidade e patologia; é sobre um punhado de valores gloriosos, respeitáveis e bem intencionados.
Por trás da lógica de separar BDSM e sexo, o que impera é a higienização das práticas. Ao longo da história, as diversas maneiras de se expressar sexualmente sempre estiveram submetidas a mecanismos de controles social, religioso, médico e jurídico, o que resulta, de uma maneira ou de outra, em repressão e estigmas sexuais.”
Vemos aqui que há um distanciamento entre a compreensão do que é o BDSM e do que é o sexo. Nos esforçamos, enquanto comunidade, em apresentar para o neófito o que é BDSM e desconstruir alguns conceitos já estabelecidos que ligam as práticas aos abusos, mas não fazemos o mesmo esforço para apresentar o que é sexo. Portanto, quando aqueles que se reconhecem EPE (como comunidade), mencionam uma troca de poder relacinoada ao sexo, encontram uma barreira.
“Ué, mas eu não necessariamente faço sexo com meu submisso!”. Perceba que essa frase está sendo dita pela ótica de quem ainda vê sexo como penetração, então, de fato, essa pessoa não penetra, mas alcança o seu próprio orgasmo em mandar, em sentir que o outro obedece, em ter um submisso.
Então, muitos não se viram representados nesse contexto apresentado pela ideia de que há uma troca de poder de forma erótica, dessa forma, foram construídas uma narrativa diferente que contemplasse também a frase anterior. “Não é uma troca de poder no sexo, mas em outros contextos”, possibilitando aqui a criação do ‘Partial’, e consequentemente do ‘total’.
Neste caso, seria necessário compreender o que é sexo, onde ele se perpetua no seu íntimo e vermos que, por mais que seja uma troca absoluta ou apenas momentânea e parcial, isso não deixaria de ser algo sexual, portanto, as definições de TPE e PPE, servem para descrever os modelos das práticas mas com uma proposta de dizer que não, nada daquilo que vivemos é sobre sexo e que remete a uma sexualidade.
“Reconhecer o sexo como intrínseco ao BDSM não significa agir sem responsabilidade com quem praticamos. Não é uma questão de permissividade com nossas relações, mas sim uma questão de autoaceitação e autoentendimento. O pentelho nos chicotes dos BDSMers é entender que queiramos ou não, nós não nos encaixamos nos padrões sexuais ditos como convencionais socialmente. Esconder o sexo debaixo do nosso tapete não nos tornará mais palatáveis para o olhar baunilha porque nós não somos. BDSM é transgressão.
O nosso recurso nesse impasse todo é assumir orgulhosamente o que fazemos: eu apanho e bato pela vontade, eu amarro e sou amarrada pelo tesão, eu domino e sou dominada pelo desejo, eu me entrego e eu cuido pelo prazer. E eu gozo. Pelo pau, pela buceta, pelo cu, de mente e de corpo.
Sobretudo, eu respeito a mim e a meus pares. Eu reconheço que tudo que fazemos é em nome do nosso desejo, do nosso prazer, do nosso gozo e não há do que nos envergonhamos disso.”
Conclusão
Eu não me posiciono exatamente como um adepto da mudança de sigla do BDSM para o EPE. No entanto, entendo que, ao falarmos que BDSM é sobre ‘bondage, disciplina, sadismo e masoquismo‘, estamos reforçando o estereótipo construído sobre sadismo e masoquismo, como apresentei nesse texto sobre os dois termos.
Eu gosto bastante da construção da comunidade EPE, pois ao meu ver, essa descreve melhor tudo aquilo que vivemos no nosso íntimo e nos resguarda de sermos constantemente associados a doentes ou perversos.
No entanto, o fato do termo se distanciar da sua origem deu margem para ser questionado e interpretado sob novos olhares, mesmo que estes tenham uma visão higienizada e castradora sobre as atividades sexuais. Assim, BDSM ganhou um discurso de que não é sobre sexo e o termo EPE ganhou irmãos.
Pelo domínio que eu tenho sobre a história da cultura e dos termos, se você acredita que sua relação seja PPE ou TPE, não deixou de ser EPE. Se sua entrega é parcial ou total para seu companheiro ou companheira, nada disso deixou de ser sexual, pois o seu prazer está justamente nessa dinâmica. Da mesma forma que há quem defenda que você pode escolher entre jogar com a base SSC, RACK ou PRICK, há o mesmo discurso equivocado de que TPE, PPE e EPE são passíveis de escolha.
Reconheço que, diferente do primeiro caso, é possível acordar uma entrega total ou parcial entre os envolvidos, mas não que exista diferença entre uma entrega parcial e uma erótica, ou uma erótica de uma total. Se formos levar ao pé da letra a lógica entre TPE, PPE e EPE, uma entrega erótica (apenas no sexo) é, por definição, entrega parcial, não?
- Mas então, o que você pode concluir? Divida suas considerações nos comentários e vamos conversar um pouco!
AUTOR
Mestre Sadic
Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.
Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P
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Respostas de 3
Texto bastante completo e interessante do Mestre Sadic! Muitos dados históricos, acredito que vou precisar reler algumas vezes até ter o entendimento completo. Mas consigo entender a ideia de algumas pessoas em querer colocar o BDSM como algo acima ou separado do sexo. Penetração não é a única forma de sexo. Só tenho uma compreensão diferente quanto a classificar como uma transgressão. É um comportamento humano, que pode sim ser visto como transgressão ou perversão por alguns moralistas, mas tudo o que é feito é em busca do prazer pessoal. E não é isso que todos estamos em busca todos os dias? Seja nos exercitando, comendo algo, mantendo relações com pessoas queridas… claro, isso não significa se colocar acima dos outros. Pode estar sendo romântico no sentido mais ingênuo da palavra, mas se eu puder ter prazer e quem está comigo também (seja como for a definição de prazer para a outra parte), por que não o faria?
Ninguém escolhe sentir prazer como Dominador ou submisso, ou com outras práticas, sejam quais forem. É algo nato, que alguns demoram mais do que outros para descobrir, outros preferem esconder de si próprios. Assim como a orientação sexual e a identidade de gênero, estão conosco desde que nascemos. A diferença é escolher olhar pra dentro de nós mesmos ou se esconder.
Hei, Morroi, acompanho seus comentários e eu adoro seu posicionamento e como você contribui com suas reflexões. Continue, estou adorando!
Meu querido, então, é justamente isso. Ninguém escolhe gostar do que gosta, nós só gostamos. Mas durante muito tempo, gostar de algo foi dividido entre ‘isso é certo e isso é errado’. Acontece até hoje, né? Bom, o tempo passou e a questão ainda é forte: O BDSM continua sendo desassociado do sexo (o que é uma besteira aos meus olhos), e pela sigla e pelos termos usados dentro da nossa comunidade, nós ainda achamos que somos doentes ou que passamos por algo na infância POR ISSO gostamos do que gostamos (como um trauma?), e relacionamos nossos gostos pela compreensão popular que temos.
Um sádico é ‘o malvado’ e o masoquista é, ‘a vítima’ ou a pessoa sem amor próprio.
Justamente porque o termo ‘sádico’ e ‘masoquista’ estão associados aos transtornos e tem uma boa influência da mídia e dos filmes, né? Então, enquanto ainda nos chamarmos disso, a menos que propuséssemos uma ressignificação dos termos (algo similar ao que ocorreu com o Queer), nós vamos continuar topando / esbarrando no mesmo fim. Complexo né?
Espero que leia mais quantas vezes quiser os meus textos, é sempre um prazer auxiliar. Abraços!
Muito obrigado Mestre Sadic! Realmente, ninguém é visto como uma aberração por gostar ou não de cebola ou da cor amarela. Mas gostar de práticas sexuais além do “papai e mamãe”, isso é perversão, é coisa de gente traumatizada que precisa de tratamento – aliás, se todos pudessem ter a oportunidade de passar por umas sessões de psicoterapia o mundo seria bem melhor! Confesso que levou muito tempo no divã até eu perceber que não é errado eu gostar de me sentir submisso…
Penso que, além da influência da mídia, muito disso é decorrente das religiões e do moralismo enraizado nestas. Longe de mim criticar quem se identifica com alguma religião, mas é necessário ter um olhar crítico. E entender que cada um é diferente, o que serve para mim pode não servir para outro e vice-versa e, surpresa, tudo bem!
Existem comportamentos que podem sim ser considerados até desvios de caráter – qualquer coisa que envolva seres indefesos ou vulneráveis – menores de idade, pessoas com capacidade cognitiva comprometida ou, saindo do campo humano, animais. Propor ou realizar algo com alguém que é incapaz de se compreender o que está acontecendo ou de se defender, é de fato errado. Mas, a partir do momento em que as práticas ocorrem entre dois adultos e de forma consentida, não há mal algum.
Seria perfeito poder ressignificar os termos sádico e masoquista, mas acredito que estamos muito distantes desta realidade. Um primeiro passo nesta direção seria cada um se preocupar com a sua vida e respeitar o outro. Percebo que as gerações mais novas têm um pouco disso, quando observo o comportamento dos mais jovens em relação a casais homoafetivos. Quem sabe com o tempo as novas gerações estendam esta “indiferença” às práticas sexuais (e todos os outros comportamentos) de terceiros.
Abraço e obrigado pelo aprendizado!