Na semana passada falamos sobre a construção do termo RACK no BDSM e vamos continuar esse assunto falando sobre o PRICK que é igualmente defendido como uma base elegível e que possui tantos discursos equivocados por aí.
Me acompanha?
“Cuzão”
Para quem estuda a língua ou é fluente no inglês, já deve ter notado que o inglês americano não verbaliza muitas letras das palavras nas pronúncias. Não é exatamente o que está escrito que se pronuncia e muitas vezes, duas ou três palavras viram uma única expressão, o que acaba tornando a verbalização completamente diferente da escrita. Além disso, há as siglas e os acrônimos, que existem em todas as línguas.
Muitas vezes a abreviação acaba gerando palavras existentes, como irei apresentar a seguir.
O termo P.R.I.C.K. (Personal Responsibility in Consensual Kink) deu espaço para o acrônimo P.R.I.C.K. (Personal Responsibility, Informed Consensual Kink) e, consequentemente, para “prick” significando ‘cuzão’ (outras referências: urban dictionary e etymology dictionary).
Hoje em dia, alguém que defenda a existência de uma dinâmica P.R.I.C.K. no BDSM será constantemente associado a ser um cuzão, porque a própria comunidade passou a se posicionar contra quem defendesse isso. Esse texto escrito pelo Zetsu é só um dos vários exemplos existentes do quanto a discussão do “P.R.I.C.K.” não é viável como uma base para o BDSM.
Vamos entender melhor tudo isso…
Personal Responsibility in Consensual Kink
O termo SSC (Safe, Sane and Consensual) vinha ganhando uma força política para fora da comunidade kink, se posicionando como um slogan de aceitação e reforçando a sanidade entre os praticantes do BDSM que estavam sendo constantemente julgados pela comunidade LGBT e também pela mídia conservadora da época.
Em 1999, quando Gary Switch disse que as práticas da nossa comunidade estão mais próximas de “práticas consensuais com a consciência dos riscos“, do que algo totalmente seguro, ele não propôs uma conversa entre “ou você é SSC ou você é RACK”, mas sim uma definição de que o BDSM (e tudo envolvido nele) estava mais para “adultos consentindo com consciência” do que de fato o que o slogan do SSC promovia.
Então, era uma discussão acerca de tudo o que estava sendo praticado, e não uma nova proposta de slogan ou uma construção das bases.
Nos Estados Unidos, algumas cidades possuíam organizações BDSM que desenvolviam atividades de cunho educacional e, para se praticar, você deveria, antes, se associar a um desses grupos, participar de alguns workshops e eventos, ler algumas coisas, estar familiarizado com alguns manuais e depois começar sua aventura sexual com os outros adeptos. Houve também eventos envolvendo mais de uma cidade e/ou organização BDSM e isso sempre foi visto com muito apreço entre os praticantes, pois independente do local dos Estados Unidos em que você morasse, todas as organizações e adeptos defendiam o mesmo discurso e compreensão, gerando uma unidade no movimento.
Essas organizações debatiam e trocavam conhecimento entre si, logo as informações se propagavam muito rápido dentro da comunidade e, dependendo da interpretação que se tinha desses discursos, isso poderia se refletir no futuro tanto de forma positiva quanto de forma negativa.
Em 2002 (2 anos depois da declaração do Switch com o RACK), houve o BDSM Overdrive, um evento que contava com a presença de diversas organizações e era aberto aos baunilhas, pois havia tanto exibições quanto palestras sobre liberdade e conscientização sexual.
Uma das palestrantes desse evento foi a Sarah que fez uma provocação acerca da responsabilidade e cuidados dentro das práticas, ela colocou em um slide a seguinte frase: Personal Responsibility in Consensual Kink (Responsabilidade pessoal em práticas consensuais).
O discurso provocativo dizia que as seguranças e os cuidados não eram responsabilidades unicamente do TOP (ativo). O corpo do bottom (passivo) precisava de pomadas e cuidados após as práticas e mesmo que o Top esquecesse de apontar quais remédios consumir ou qual procedimento adotar com as lesões e hematomas, o bottom também deveria buscar esses cuidados por conta própria e informar ao top para que tenha conhecimento também.
Veja que o pensamento de Sarah está caminhando para uma discussão sobre os dois serem responsáveis pela segurança.
Pode parecer óbvio esse tipo de conclusão para os dias de hoje, mas nem sempre foi assim. Entenda que para o baunilha que apenas assistiu um filme e quer praticar, é difícil compreender todas as nuances e riscos envolvendo as práticas.
Além dos contos eróticos que eram vendidos em revistas, os filmes que envolviam algo considerado “fetichista”, produzidos dos anos 70 até os 90, contavam uma realidade completamente diferente das vividas dentro dos clubes e boates. Nos filmes, a figura dominante detém tanto poder que a situação simplesmente acontece de acordo com sua vontade e nada nunca dá errado, enquanto a pessoa submissa sempre possui um papel de vítima da história, sem qualquer vontade própria ou sem poder expressar qualquer opinião ou pensamento.
Isso compõe o imaginário do neófito que gostaria de conhecer o BDSM, e aí aulas como essas se tornam extremamente necessárias para deixar claro que não, por mais que esteja tudo acordado, você não se tornou um ser humano irracional. Se o seu top quiser fazer sessões todos os dias, mas o seu corpo ainda estiver se recuperando da última, cabe a você também interferir e evocar a safeword. Você (bottom) tem responsabilidade sobre o seu corpo.
Mesmo depois da Sarah discursar bastante sobre as responsabilidades e seguranças dentro das práticas, não houve uma compreensão de que ela propôs um termo chamado ‘P.R.I.C.K.’, como foi com o RACK e o SSC.
O que a Sarah disse contribuiu tanto com a questão da ‘segurança’ do SSC quanto com a ‘consciência dos riscos’ do RACK, pois não tratava-se de uma base. Quando falamos em base estamos falando dos princípios éticos que vão nortear nossa conduta e nossas práticas dentro do BDSM e que estão estritamente ligadas à consensualidade e aos acordos estabelecidos. O que Sarah propôs foi uma reflexão sobre os cuidados envolvendo ambas as partes, ou seja, não é responsabilidade apenas de um lado pensar pelos dois.
Mas, então, em que momento o discurso da Sarah foi desmembrado a ponto de definirem a frase como um acrônimo (P.R.I.C.K.) e torná-lo equivalente ao R.A.C.K. e S.S.C.?
Personal Responsibility, Informed Consensual Kink
Segundo o Kinkly (um fórum sobre discussões sexuais e sexualidades), o í passou a ser visto como INFORMED. O único rastro que temos é justamente na indústria pornográfica.
Não é nenhuma novidade que a indústria pornográfica comete inúmeros abusos com seus atores e se isenta sempre que pode. As produtoras desenvolvem cenas para gerar o imaginário do seu público. Dessa forma, as produtoras passaram a se posicionar da seguinte maneira: “preciso que alguém aceite as condições do contrato, posso informar todos os riscos presentes nas cenas e se você aceitar os termos, não é mais responsabilidade nossa”.
A mudança do “in” para “informed” foge da linha de pensamento da Sarah, pois na tradução exata seria “Práticas consensuais com riscos informados”, e isso, inclusive, passou a ser uma discussão judicial. Se eu propuser algo que seja um crime e você aceitar e assinar, a culpa é só sua e eu me safo?
Qual o limite entre consentimento e legalidade jurídica?
O caso mais famoso dessa história é o do Armin Meiwes. Meiwes encontrou um cara na internet que queria ser castrado e comer o próprio pênis, os dois assinaram contratos e assumiram consentimento dos atos e ainda sim foi preso por homicídio culposo. O caso inteiro foi muito bem retratado em um documentário que está no YouTube.
Tanto dominadores e dominadoras profissionais quanto produtoras pornográficas tentaram se camuflar judicialmente através de um contrato e se esforçaram para defender e reforçar que o P.R.I.C.K. seria uma base completamente aceita dentro do BDSM.
Bom, não é bem por aí que as coisas são. Os advogados que se manifestem e concordem comigo que um contrato nunca será superior à constituição da lei. Por mais complexa e detalhada que seja a elaboração dos termos, as partes envolvidas devem assumir as consequências, no entanto, muita coisa aconteceu e como estamos falando de alguns milhões de dólares, e muito poder envolvido, a compreensão de que P.R.I.C.K. poderia ser um modelo a ser seguido para isentar-se das complicações referentes a uma das partes dos jogos se propagou.
A resposta da comunidade e um forte aliado
As organizações BDSMers não podem excluir uma mentira contada na internet, tampouco lutar contra a indústria pornô. A caminhada argumentativa e educacional foi adotada pelos membros. Os produtores de conteúdo passaram a escrever sobre a comparação do PRICK, com o SSC e o RACK, como nesse texto, enquanto outros membros do BDSM passaram a associar o P.R.I.C.K. ao termo ‘cuzão’ e chamaram os defensores dessas práticas de cuzões e aproveitadores.
Mas a maior resposta para esse dilema veio da própria indústria pornô, com o kink.com. Vamos fingir que todos nós somos puros e você não sabe o que é a Produtora Kink.
A Kink.com foi fundada em 1997 pelo Peter Acworth foi uma das primeiras produtoras pornográfica a produzir conteúdo sobre Bondage e Shibari. Hoje ostenta o título de ser a maior produtora do BDSM.
Quando outras produtoras passaram a entrar nesse mercado do BDSM, a Kink não se opôs, pois ela sempre liderou o mercado. O problema veio com as discussões de responsabilidade (como as descritas no tópico anterior) e isso acabou tornando a própria Kink alvo de investigações e denúncias. Mesmo após se provar inocente em diversos casos e ter refutado muitas das denúncias de abusos e estupro, a Kink fez diversos manifestos em seu site alegando que boa parte das coisas, por mais aparentemente reais que fossem, envolviam uma profunda discussão sobre responsabilidade e ética por trás de suas cenas e que ela reconhecia a influência que seus produtos tinham na comunidade.
Com isso, o CEO da Kink, contratou o James Franco para produzir um documentário sobre a Produtora Kink.com, mostrando a discussão da sexualidade, indústria e consentimento entre os diretores, produtores e atores. O doc permeia por questões como “nós sabemos que os atores se sujeitam a fazer coisas que não querem por causa da grana, então, além de investigarmos isso, nós montamos cenas de acordo com a sexualidade de cada um do set para que todos tenham prazer e consentimento durante a execução”. Além disso, também mencionam o subspace e nos mostram que todos os envolvidos na produção, desde os atores até os câmeras, possuem uma safeword que pode ser utilizada para parar as gravações sempre que alguém perceber algo que não foi acordado ou se sentir desconfortável. O documentário se propõe a mostrar que a Kink não abre alas para isenção e coesão de nada e deixa a seguinte mensagem para o telespectador: “Se nós nos posicionamos assim, porque você, produtora menor, não faz o mesmo?”
Confira o trailer do documentário:
Conclusão:
Como o Gary Switch disse “vamos dispensar os acrônimos todos! (…) acabam sendo substitutos para a reflexão. Então fiquemos como ‘adultos que estão consentindo’”, então não vejo necessidade da criação de um novo termo para descrever as práticas BDSM, mas confesso que vejo cuzões defendendo um modelo de pensamento completamente irresponsável.
O discurso da Sarah não foi visto pela comunidade como uma incentivo da construção de uma base, mas quando houve uma mudança do “in” para “informed“, passaram a defender que o P.R.I.C.K. seria uma base no mesmo nível que o SSC e o RACK.
Ao estudarmos a história, percebemos que SSC e o RACK são definições do BDSM, não bases a serem seguidas, portanto, foi também um esforço dos defensores do PRICK incitar o embate entre os termos criando então polaridades e sendo aqui, para eles, o PRICK uma delas. No discurso do SSC, RACK e pela própria comunidade BDSM, reforça-se que não sejamos cuzões e não passemos pano para outros cuzões que usam de uma interpretação equivocada dos fatos para isentar-se de suas responsabilidades.
O BDSM, enquanto movimento de contracultura criado nos anos 60 por mulheres em busca de liberdade sexual, nunca apoiou violência, misoginia ou qualquer outro comportamento antiético. Ao contrário, o movimento começou pregando uma liberdade consensual baseada em respeito e ética, onde as interações práticas possuem início, meio e fim bem delimitados, e fora desse contexto impera uma atitude colaborativa e inclusiva entre os membros da comunidade.
Dessa forma, defender o P.R.I.C.K. como uma base só serve à indústria pornográfica, que visa o lucro e isenção de responsabilidade, o que caminha na contramão do que o BDSM preza, distanciando-se completamente de sua origem.
Portanto, reproduzir que o P.R.I.C.K. é uma base e, pior, que é possível de ser utilizada para nortear as ações dentro do BDSM é extremamente nocivo, sendo de interesse de um grupo específico que não está preocupado com nada que ocorre dentro do BDSM, tão pouco da aceitação social de suas práticas.
Então, de que lado você quer estar nessa equação?
AUTOR
Mestre Sadic
Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.
Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P
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Uma resposta
Texto muito completo e profundo acerca dos acrônimos e formas de relações práticas dentro do BDSM! Responsabilidade e bom senso deveriam sempre nortear qualquer relação no mundo, e em especial quando se trata de um role play de troca de poder. Infelizmente nem todos os seres humanos possuem qualquer uma destas duas características. Penso que conhecer a pessoa com quem serão efetuadas as práticas é fundamental para evitar surpresas desagradáveis e nocivas.
Muito obrigado pela reflexão!