BDSM: ESTUDO X PRÁTICA

Esse assunto vem e vai na internet e nas rodas de discussão sobre BDSM e sempre com uma incógnita: “Quando devemos parar de estudar e começar a praticar, ou quando devemos parar de praticar e voltar para os estudos?” Uma pergunta recorrente dentro da comunidade e que possui muitos pontos positivos em cada uma das esferas. Vamos discutir um pouquinho sobre?

Da prática para os estudos

Geralmente a primeira recomendação que recebemos sobre o BDSM antes de fazer parte da comunidade é: “Vá estudar e entender do que se trata”. Mas essa recomendação não é autoexplicativa, pois ‘estudar o que?’ Por onde devemos começar? O que devemos ou não consumir? Se eu me perder em uma biblioteca e ler o maior número de livros sobre o assunto que conseguir, todos eles irão dar as mãos e fazer sentido? Terei todas as respostas que busco?

Usando-me como exemplo, quando descobri que tinha prazer em dominar e em ser agressivo na cama, ainda nas minhas primeiras aventuras sexuais, eu nem imaginava que havia um nome para aquilo. Levou alguns anos para compreender que esse comportamento sexual não era ‘padrão’ e que havia uma comunidade que reunia adeptos, outras pessoas como eu. 

Essa compreensão só veio depois que encerrei um namoro (2008) e na experiência de solteiro, queria continuar fazendo aquelas coisas que fazia no namoro -afinal, me davam prazer pra caramba-, fui entendendo o quão incomum e difícil encontrar pessoas que tivessem o mesmo gosto. 

Partindo dessa mesma premissa, quando fui encontrando as comunidades no Orkut e conversando com pessoas, combinei com alguém e fizemos uma prática em um motel no meio do caminho para os dois. Ressalto, novamente, que a questão do estudo não estava na minha mente como algo primário para se praticar, visto que nunca me foi passado um contexto educativo antes, assim sendo, o ponto de partida para se praticar seria o querer dos dois.

Nesse dia em específico várias coisas deram errado, mas outras deram muito certo. Uma delas foi que eu tive o meu orgasmo vendo a outra pessoa chorar. Aquilo foi absurdamente assustador! Além de tentar acalmar os prantos da pessoa, me perguntava mentalmente se eu iria ser preso por ter açoitado alguém a ponto dela chorar compulsivamente e aquilo estava me dando o máximo de tesão e ainda sim, eu não sabia o que fazer.

“Ok, o que eu faço agora?”

Soltei as mãos, limpei as coisas, acalmei e conversamos. Tudo ficou bem e continuou bem, mas não para mim. Tive uma profunda discussão comigo, pois nada do que havia sentido me parecia correto. Eu percebi o quão mais excitado eu fiquei quando comecei a ver as lágrimas escorrendo e o corpo da outra pessoa tremer. O susto, o medo e o prazer se misturaram de tal forma que entrei em transe. E aí, o que eu faço agora?

Nadando na contramão das recomendações que temos hoje na internet sobre “o que ler para começar a estudar o BDSM”, a primeira coisa que eu li foi o livro Serial Killers – Louco ou Cruel da Ilana Casoy. A minha única conclusão até então, além de que eu estava completamente errado, foi que eu era um psicopata. Como poderia ter prazer com aquilo? Então, essa ressaca moral me instigou a entender o porquê de ser assim e se um dia isso me levaria a fazer vítimas em vez de parceiras sexuais. 

Claro que na época eu não conhecia o aftercare, e tenho certeza que boa parte dessa culpa que senti não surgiria em minha cabeça caso estivesse mais familiarizado com essa etapa, principalmente o aftercare do top. Enfim.

Depois de devorar alguns autores e livros desse assunto (como Ana Beatriz Barbosa e Harold Schechter), entendi que não era um louco, tão pouco um psicopata (ufa!) e que os meus prazeres se diferenciavam daqueles casos contidos nos livros. Essas leituras me fizeram entender que a psicopatia seria uma condição do nascimento somada com características da formação do indivíduo. A forma de vivenciar o prazer que eu estava descobrindo era apenas a expressão da minha sexualidade e não uma anomalia, visto que, diferente dos psicopatas, eu tinha medo e receios em praticar, e algumas reações me impressionavam, então consegui perceber os limites, e esse era o divisor determinante entre eu e um psicopata.

Veja aqui que a questão da culpa e entender a estrutura dos meus prazeres foi o primeiro passo que dei. Não houve uma recomendação, ou uma discussão sobre a etimologia das palavras compostas no acrônimo do BDSM, ou uma apresentação da sopa de letrinhas sobre as bases. Eu não me preocupava com isso até então, pois estava completamente obcecado em entender qual seria o meu futuro se desse vazão para esse meu lado que havia sido recentemente apresentado.

Depois que acalmei um pouco minha inquietação referente à minha sanidade, busquei a comunidade para finalmente praticar. Esse período entre 2010 a 2013 foi o mais importante nesse processo de descoberta e aprofundamento teórico. 

Aqui construí muitas das minhas convicções (que depois caíram por terra durante as práticas), mas também pude experienciar novas situações que jamais encontraria se não fosse justamente esse contato com o lúdico. Ler um livro ou alguns manuais técnicos trás para si muitos exemplos e encurta caminhos de aprendizados que talvez você não teria se estivesse apenas na prática.

Por exemplo: Entendendo que eu gosto de bater e ver a pessoa chorar, parto para a segunda pergunta, onde bater e como bater, pois quais regiões ao bater não causará um dano maior do que o esperado? Dessa forma, cabia a mim começar a entender que corpos humanos possuem terminais nervosos, as camadas de pele (epiderme, derme, hipoderme) e quais as lesões que causam hematomas e porque as causam. 

Quantas pessoas você conhece que falam ‘eu adoro ver as marcas no dia seguinte’, ‘nossa, ficou vermelho, mas aqui ficou azul, e aqui está verde!’. O que e porque compõe esse arco-íris cromático? Depois, o que passar, como recuperar os tecidos da pele? Qual o período ideal entre uma sessão e outra para que o corpo se recupere? Sem contar que cada corpo funciona de uma maneira, reage de forma diferente. Por exemplo, os hematomas em uma pessoa podem sumir após dois dias e em outra podem ainda ser visíveis após duas semanas.

Essas e outras respostas só iremos obter com leitura, com estudo e com aprofundamento. Não é algo que se tem fácil na internet, porque muito mais do que consumir o que encontrar, é saber o que deve-se consumir e o respectivo porquê de consumi-lo

“Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve.”
Lewis Carroll

Dos estudos para a prática

No exemplo anterior, falei em primeira pessoa e expressei o exemplo do impact play / spanking, que são as duas práticas que todo o neófito esbarra na internet, mas apenas ele existe no BDSM? Não, com certeza não e esse site reforça bastante isso. 

Diferentemente do impact que você pode fazer e depois entender o que está fazendo, há outros assuntos que demandam mais estudo do que prática para começar, é o caso do shibari, entre outras. Você precisa entender inicialmente qual corda usar e qual não usar, o que deve fazer e o que jamais fazer. Então, esse é um excelente caso de que antes de sair fazendo qualquer coisa, você precisa também pensar no que está fazendo e ter alguém com mais experiência para perguntar e dividir suas dúvidas é, sem sombra de dúvida, o mais importante.

Voltando para o caso do BDSM em si, a sua compreensão da normatividade do BDSM estará completamente associada à conclusão que seus estudos levarão para ti. Como abordei aqui nesse artigo “BDSM: Cultura, subcultura ou contracultura?”

É muito difícil descrever o BDSM sem uma base teórica e considero igualmente difícil separar as práticas de abusos sem que haja uma discussão sobre ética, consensualidade e outros aspectos da nossa cultura.

Esse campo é pouco tátil na ausência de um arcabouço teórico. No entanto, ao caminharmos por esse caminho científico, estamos dando margem para outras compreensões da mesma situação. Em outras palavras: Este é o grande motivo de ter tantas visões divergentes sobre o BDSM. Linhas de estudos diferentes não chegarão ao mesmo lugar e precisamos ponderá-las e desenvolver um senso crítico para que possamos perceber o que está nos agregando e o que não, pois há quem diga coisas para se opor a outros vieses teóricos.

O lugar comum dos estudos: Preciso trazer esse assunto neste campo por ser importante e pouco discutido. Eu uso o termo “lugar comum” para descrever aquele ponto em que todo mundo chega e todo mundo está em algum momento. Utilizo o termo ‘lugar’, porque este compreende ‘espaço físico’, logo, para chegar lá você percorre um caminho. Então, ao falar de estudos sobre o BDSM, muitas vezes caminhamos para o lugar comum, o ponto em que todo mundo concorda ou que seus estudos concluem e, aqui, há uma grande armadilha, pois muitos desses ‘lugares comuns’ provêm de fora da nossa comunidade. 

Usarmos o termo parafilia para descrever nossos prazeres é um ‘lugar comum’ em que existe o jeito ‘certo e errado’ de se ter prazer. Associar nossos prazeres há alguma coisa que aconteceu na infância ou algum trauma é o ‘lugar comum’ de que todo mundo é igual, todos nós nascemos pelo mesmo ponto de partida e, conforme passamos por traumas, vamos nos tornando pessoas diferentes e, portanto, se você tem um gosto específico, provavelmente teve um divisor de águas na sua primeira-infância. 

Eu separo o ‘senso comum’ do ‘lugar comum’ por uma questão didática, pois quero separar as duas compreensões mesmo. Um exemplo simples: É um senso comum de que as práticas BDSM partem de uma pessoa que está na posição de TOP e uma pessoa na posição de BOTTOM, mas o lugar comum determina que a pessoa que está na posição de TOP goste / tenha uma sexualidade dominante, e a pessoa que está sendo a passiva / bottom tenha uma sexualidade submissa. 

Então, retomo o ponto anterior: O quanto do senso e lugar comum, irá prejudicar a percepção e compreensão do que fazemos no BDSM? Neste caso, percorrer apenas um caminho te levará para apenas um ponto de vista, mas apenas o conhecimento e a amplitude dos estudos que será libertadora.

Nunca me esquecerei do jargão popular:
“na prática, a teoria é outra!”

Quando parar de fazer um e ir para o outro?

Estamos aqui em uma incógnita. Eu prefiro dizer que isso nunca deve acontecer e que ambos devem coexistir, no entanto, existe uma forte tendência em não nos sentirmos prontos o suficiente para praticarmos, visto que a teoria ainda não está clara, e a recíproca também é verdadeira, onde há quem não procure na teoria porque a prática está ‘redonda e não há o que mudar’

Bom, para os dois casos, a única coisa que eu reforço é justamente a ética. A partir do momento que você compreende que é uma pessoa ética e seu discurso condiz com a prática, você transaciona. Antes disso: teoria, contextos e reflexões.

O Patrick Califia disse em 2004 o seguinte pensamento: “Em parte, eu suspeito que seja muito mais fácil se assumir como bottom. Você não precisa fazer nada para ser um bottom.”

Patrick afirma que o TOP precisa estudar o triplo para começar a praticar, enquanto para o bottom basta que este apenas se posicione na hora de montar os acordos para que tudo esteja dentro do consentimento. Dessa forma, ser top demanda de um arcabouço maior de possibilidades e empenho, enquanto para ser bottom parte apenas de uma vontade em vivenciar algo e procurar quem possa lhe fornecer aquilo.

Essa responsabilidade entre as práticas não é apenas do TOP, como argumenta Gary Switch (fundador do termo RACK) na entrevista de 2003, ao The Bottom Line: “O bottom concordou em assumir os riscos então ele não têm direito de reclamar? Bem, há o risco e há incompetência e eu realmente espero que a negociação vá bem mais além que: 

‘Oi, eu sou SSC (ou RACK), querido(a). Não se preocupe com nada.’

‘OK, vamos praticar!’

Se aquele cara quer usar um bullwhip em você, faça-o mostrar primeiro que ele consegue acertar 10 vezes um alvo a cada dez tentativas. Isto te dá uma boa ideia do risco que você está assumindo.”

Apesar das datas serem próximas, Gary já tinha esse pensamento quando cunhou o RACK em 1999, com o seguinte contexto: “Se a gente quer limitar o BDSM ao que é seguro, não poderemos fazer nada mais extremo do que flagelar alguém com um macarrão molhado. Escaladores não dizem que seu esporte é seguro, pelo simples motivo de que não é;”

Indiscutivelmente, os dois argumentam que nossas práticas são perigosas e os riscos não devem ser negligenciados, portanto, o estudo alinhado com a consciência é imprescindível tanto da parte do TOP quanto da parte do BOTTOM. 

Acredito que esse assunto não tenha fim e por isso, abro os comentários para discuti-lo, vamos? 

AUTOR

Mestre Sadic​​​​

​Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.

Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P

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Uma resposta

  1. Reflexão muito interessante, e que dá margem a uma discussão ampla. Não acredito que exista uma resposta única para o questionamento, pois cada um vai se sentir mais ou menos preparado para sair da teoria e partir para a prática, baseado muito na experiência individual e suas vivências. Penso que alguns conceitos são fundamentais, como o SSC, e devem ser compreendidos por todos.
    Com relação a entender em que momento parar de estudar e partir para a prática, a minha concepção é de que nunca se deve parar de estudar. A teoria dá sustentação à prática, seja no BDSM ou em qualquer área da vida. E, quando se vai “a campo”, novas questões surgem, que nos levam a recorrer aos conceitos teóricos mais uma vez. Acredito sim, que o ideal é manter os estudos em paralelo e iniciar a experimentação com alguém que tenha experiência e paciência para que tudo flua de maneira suave. Nem sempre o que imaginamos é o que acontece na realidade – falo isso por experiência teórico-prática em outras áreas, porém penso que é aplicável a todas as novas experiências.
    Finalizando, gostaria de dividir uma frase atribuída a Leonardo Da Vinci: “o desejo do saber é natural aos homens bons. O conhecimento torna a alma jovem e diminui a amargura da velhice. Colhe, pois, a sabedoria. Armazena suavidade para o amanhã”.

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