NEGOCIAÇÃO A PONTE DO IMAGINÁRIO PARA O REAL

Depois que identificamos e aceitamos nossos prazeres, é comum que fiquemos ávidos por experimentar todas essas descobertas. Começamos a fantasiar sobre todas as possibilidades de vivenciar esse mundo novo, criamos em nosso imaginário um ideal de cenas, sessões e parceires, ambientes perfeitamente decorados, com uma iluminação fantástica e trilha sonora condizentes com as sensações que ansiamos conhecer. No entanto, esse cenário, apesar de maravilhoso e essencial para nos ajudar a mergulhar nesse universo, não dá conta de muitas variantes do mundo real.

Em nossas fantasias não ocorrem imprevistos nem acidentes, ninguém tem uma câimbra, por exemplo, e os limites não são bem delineados. Então, é importante alimentar essas fantasias sem esquecer que muitos dos elementos que construímos fazem parte de uma realidade idealizada e utópica. Dessa forma, use toda essa vontade de fazer com que seus desejos se materializem para traduzi-la em estudos que possibilitem práticas mais seguras e prazerosas.

Queremos destacar a importância desse momento para quem acaba de chegar ao submundo. Esse sentimento de imaginar como será que tudo funcionará na realidade é único e só acontece uma vez! Depois que temos a primeira sessão e começamos a praticar, esse lugar que imaginamos fica nas nossas lembranças e as expectativas são substituídas por situações bem mais palpáveis.

Dessa forma, queride leitor, suas autoras recomendam fortemente que você não tenha pressa e aproveite ao máximo esse momento. Entretanto, caso você identifique um parceire em potencial para compartilhar práticas ou uma D/s, entenda que mais uma vez a parcimônia faz-se necessária.

Assim, se você demonstrou interesse em alguém e esse interesse foi recíproco, é chegado um dos momentos mais importantes dentro do BDSM: a negociação.

A negociação é o momento onde serão feitos todos os acordos que são a base do BDSM. Esses acordos podem ser feitos de forma verbal ou podem ser transcritos sob a forma de contrato. A forma como os acordos serão selados dependerá única e exclusivamente das pessoas envolvidas, não sendo uma regra seguir por um ou outro caminho, deixando claro que independente da opção, nenhum acordo estabelecido é imutável.

No Medium do BDSM.Ed, a Margot resgatou e revisou os textos do alt.sex.bondage que foram traduzidos pelo Desejos Secretos e um dos textos sobre negociação (que você pode conferir na íntegra aqui) diz o seguinte:

“Este conceito de ‘negociação’ na comunidade SM simplesmente significa comunicação aberta e honesta sobre o que você quer e o que você não quer. A negociação, nesse conceito, não é apenas um processo de ‘fazer bom negócio’, em que uma pessoa está tentando ter algo às custas de outra. É uma técnica de companheiros na qual ambos falam sobre o que fizeram, o que excita ou não vocês, e, então, vocês podem se sentir mais confortáveis e sintonizados. É totalmente autêntico que ambos falem de suas fantasias e limites — sobre o que os deixam excitados e cheios de tesão. Falar aos seus parceiros sobre coisas que não quer que eles façam é valioso, uma vez que você deseja ter seus limites respeitados… e se você não disser aos seus parceiros quais são as coisas que não gosta, eles podem fazê-las, e nenhum de vocês irá aproveitá-las. Por outro lado, se você expressar seus limites e seu parceiro ignorá-los, isto não é consensual, e você deve pensar seriamente se você pode confiar nele. A negociação pode ajudar a antecipar todas essas questões, o que é de serventia a ambos.”

Para nós, uma negociação BDSM mais do que uma conversa sobre gostos, compartilhamento de fetiches e estabelecimento de limites, deve ser um momento prazeroso para ambos, onde os parceires vão se conhecer, criar intimidade e, principalmente, confiança. É também nesse momento que verificamos se temos os mesmos entendimentos sobre conceitos e definições, se nossos pensamentos e ideologias são semelhantes e onde alinhamos nossas expectativas.

Nessa fase consideramos extremamente importante que as conversas e os acordos sejam feitos de forma horizontal. A relação hierárquica ainda não foi concretizada, uma vez que as pessoas ainda estão fomentando seus acordos e aqui chamamos atenção para esse aspecto importante para que o bottom sinta-se à vontade para expressar-se e comunicar-se da maneira mais transparente possível e sem receios de estar ferindo a hierarquia de alguma forma.

Sobre esse aspecto da negociação, em seu texto “A mácula do poder no BDSM” (que pode ser acessado na íntegra aqui), Mestre Sadic nos diz o seguinte:

“Quando vamos jogar ou participar de uma ‘play’, colocamos uma máscara e assumimos personas diferentes da que somos em situações da vida cotidiana, o que é essencial para não confundirmos as cenas criadas pela nossa imaginação para satisfazer nosso prazer sexual, com aquilo que é a nossa vida real, com nossos valores morais e éticos.

Assim, quando duas (ou mais) pessoas sentem o interesse em jogar juntos, o que vai ocorrer primeiro é a negociação, que se dá de forma horizontal, onde as pessoas envolvidas vão ter uma conversa como dois iguais, falar dos seus gostos, dos seus desejos, dos seus limites e estabelecer os acordos que vão funcionar como a lei da relação (no caso de uma D/s) ou das práticas (no caso de play partners). A partir do momento que os acordos foram selados, aí sim inicia-se a dinâmica vertical e a hierarquia entra como o primeiro pacto desse jogo lúdico, que cria os laços sociais e desperta o senso de comunidade, uma vez que os participantes começam a compartilhar dos mesmos ritos.”

Entendido isso, sugerimos que os futuros parceires compartilhem textos, livros e filmes sobre o BDSM em geral e sobre fetiches específicos que tenham vontade de realizar. Consumir esses conteúdos e conversar sobre nossos entendimentos acerca dos mesmos, além de uma ótima maneira de conhecer o outro, ajuda a cultivar a conexão entre as partes.

No livro Couro Imperial, da Anne Mcclintock, há uma passagem sobre isso:

“o S/M é tipicamente colaboração, envolvendo cuidadosos rituais de iniciação, uma escrupulosa definição de limites e uma constante confirmação de reciprocidade que pode vincular os participantes num êxtase de interdependência: abandono no momento mesmo da dependência. Mas como o S/M envolve uma negociação de fronteiras perigosas, qualquer violação do roteiro está eivada de riscos, enquanto que a fidelidade mútua à combinação cria uma intimidade de tipo muito intenso (MCCLINTOCK, 2003).”

Sendo assim, entendemos a negociação como um processo colaborativo essencial, seja para práticas avulsas, seja para a construção de uma D/s saudável.

Apesar de não haver um tempo pré-definido para o processo de negociação, como já dissemos por aqui outras vezes, as pessoas devem levar o tempo que acharem necessário antes de partir para a primeira sessão. Importante também salientar que o processo de negociação nunca acaba e que nenhum acordo é fixo. A comunicação e o diálogo constantes são essenciais para a manutenção das relações. Então, não se sinta nunca desconfortável em comunicar ao outro sobre uma prática que não curtiu, um acessório ou instrumento que não foi prazeroso, pois isso faz parte do processo de conhecimento e evolução.

Da mesma forma, se no início dos acordos você não estava segure sobre determinada prática e preferiu não incluí-la nos acordos, ou algo era um limite no começo, mas depois você ficou com vontade de experimentar, está tudo bem mudar de ideia. Apenas converse sobre isso com seu parceire de jogo.

É muito comum que o iniciante se questione acerca dos seus próprios limites e para isso não temos exatamente uma resposta, mas apenas deixe claro que você não tem experiência e que está insegure ainda. Seu Top deverá agir sempre com ética, responsabilidade e bom senso para entender que em um primeiro momento é preciso conduzir as práticas devagar, sempre verificando se você está ok. E não se esqueça que você pode e deve evocar a safeword caso sinta-se desconfortável com alguma coisa.

Entre os tópicos que podem (e devem) ser abordados em uma negociação estão:

  • Estabelecimento de uma safeword (palavra de segurança) e um safesign (gesto de segurança utilizado quando não há possibilidade de comunicação verbal);
  • Limites flexíveis (aqueles que temos vontade de superar em algum momento) e limites rígidos (aqueles que temos certeza que não gostaríamos de experienciar);
  • Questões relacionadas à saúde, incluindo limitações físicas, traumas psicológicos, medicação de uso contínuo;
  • Métodos de prevenção de IST e gravidez;
  • Cuidados a serem observados antes, durante e após as práticas;
  • Fantasias e fetiches que deseja realizar;
  • Menção às práticas já realizadas e não realizadas por ambas as partes e seu nível de experiência com as mesmas;
  • Formas de tratamento entre as partes, incluindo nomes pelos quais o bottom não gostaria de ser chamado e a forma que o Top deseja ser tratado; 
  • Construção de acordos sobre quais aspectos de sua vida o bottom deseja que o Top exerça poder, bem como as áreas da vida do bottom que o Top não irá controlar;
  • Definir se haverá dinâmica de punições na relação, o que se entende como punição e como isso será inserido na relação; 
  • Combinar sobre os ambientes em que o vínculo de hierarquia estará presente (ambiente BDSMer x ambiente baunilha);
  • Estabelecer se a relação será monogâmica ou não monogâmica e entender os aspectos que dizem respeito a outros relacionamentos que possam surgir no âmbito baunilha; 
  • No caso de relações não-monogâmicas, onde o Top possui outras posses, estabelecer se há vontade de interação com essas outras posses para criar o vínculo entre irmãs de coleira;
  • Definir se há vontade de realizar cenas públicas ou apenas sessões privadas;
  • Acordar a possibilidade ou não de empréstimo do bottom a outro Top e quais as circunstâncias em que isso pode ou não ocorrer;
  • Definir ações de aftercare de acordo com o que os parceires julguem necessário para sair da persona lúdica e retornar à realidade, tais como conversas, troca de carinhos, cuidados físicos com possíveis lesões, aquela comidinha que traz conforto, etc);
  • Construir um espaço seguro e confiável para diálogo e feedbacks constantes.

Os itens que elencamos acima referem-se àquilo que julgamos essencial de ser abordado em um processo de negociação, mas não se trata de uma lista fechada e é possível que algo que seja muito importante para você possa ter passado despercebido por nós. Caso isso tenha acontecido, entre em contato conosco para que atualizemos esse site e vamos juntes somar para construir um BDSM mais gostoso e seguro. Desejamos boas negociações a todes!

Referências:

McCLINTOCK, Anne. Couro Imperial – Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora da Unicamp, 2010.

https://medium.com/bdsm-ed

https://dombarbudo.com/guia/o-que-e-bdsm/a-macula-do-poder-no-bdsm/

AUTORA

Quem nos conduz nessa jornada pelo SubMundo é Belarina.

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Uma resposta

  1. Difícil querer contribuir com algum comentário em um texto tão rico! Mas entendo que nossos fetiches são diferentes quando imaginados e quando realizados… em nossa cabeça só há a parte boa, o prazer, e deixamos de lado os riscos e sensações desagradáveis. Por isso a negociação precisa der bem feita. Parabéns às autoras pelo artigo!

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