ENTREVISTA COM EQUINA NUR PARA O GRUPO ALCATEIA

Hoje o SubMundo traz para vocês uma entrevista incrível com a égua mais famosa do BDSM, Equina Nur, realizada e cedida gentilmente pelo Grupo Alcateia. Nessa entrevista Equina Nur nos conta um pouco de sua trajetória no meio BDSM, sua descoberta como pony girl, sua visão e entendimentos sobre conceitos e práticas, preconceitos, fetiches, saúde e muito mais!

Então, acomode-se e vem com a gente nessa jornada pelo SubMundo!

ENTREVISTA COM EQUINA NUR PARA O GRUPO ALCATEIA

Miguel Valentim: Poderia fazer uma apresentação mesmo que curta sobre você?

Equina Nur: Boa noite, pessoal da Alcateia! Aqui é Equina Nur, ponygirl, tenho 37 anos e daqui a pouquinho 38, sou partner de Rê Kessel, que também está aqui no grupo, sou submissa nas horas vagas – e em raras ocasiões – e estou aqui esta noite com vocês para falar de pony play e outros assuntos que vocês queiram saber. Muito obrigada pelo convite!

Snow: Nos fale um pouco de sua trajetória. Como conheceu o BDSM? O que despertou ou como você se descobriu uma pony girl?

Equina Nur: Conheci BDSM na verdade por causa de pony play e não o contrário. Em 2010, vi um ponyboy numa feira erótica. Era um homem com máscara de cavalo, uma sunga, botas e luvas de casco. Foi como ver na minha frente o Minotauro, mas com cabeça de cavalo. Sou muito tímida, então não tive coragem de me aproximar, mas fiquei tão fissurada que voltei no dia seguinte para ver se o encontrava, mas ele não estava mais lá. Daí não me lembro exatamente como, cheguei ao termo pony play e comecei a ver vídeos. A partir daí me trancava ocasionalmente no quarto para imitar uma égua. Não sabia o que era BDSM. Isso do quarto era como cantar no chuveiro, uma dessas coisas privadas deliciosas que a gente faz sem contar a ninguém, porque não nos ocorre, e sem refletir muito a respeito. Fiz isso por anos. E aí em 2017 vi o documentário Être Cheval (Ser Cavalo), que acompanha a trajetória de uma ponygirl, sendo treinada em um sítio nos EUA. Então entendi melhor que pony play estava ligado com esse negócio de BDSM e fiquei vidrada, porque a ideia de ser controlada por um homem que segurava minhas rédeas pareceu bem mais interessante.

Tentei entrar para o meio nesse mesmo ano, procurando um grupo de pony play no Facebook. Encontrei um grupo e marquei encontro com um suposto dominador. Brincamos informalmente na rua, com ele me dando ordens verbais e me chamando de égua. Ele usou a palavra “equina” diversas vezes durante nosso encontro. E saí daquele único encontro me sentindo bem, mas era um cara estranho e ficou por isso mesmo. Cerca de um ano depois, vi uma máscara de cavalo à venda num sex shop perto de casa. Passei um mês paquerando ela e um dia decidi que ia comprar, não importa o que custasse. É a máscara que uso hoje. Aí fiz um perfil no Facebook, era dia 4 de setembro, terça-feira. Achei outro grupo de pony play, conversei alguém que me indicou a pessoa que seria minha primeira treinadora. Dia 9 de setembro, era um domingo, falei com ela. E dia 22 estava tendo minha primeira experiência de pony de fato no meio, que foi uma cena no Dominatrix Augusta.

E eu só queria saber de pony. Comecei a experimentar outras coisas, mas muito era no estilo “já que estou aqui mesmo” ou “vou ter que fazer isso para conseguir ter a sessão de pony”. Sim, alguns dominadores só topavam sessão de pony com essa condição. Que ingênua eu era. Mas dessas coisas diferentes do pony acabei gostando de algumas poucas. E seis meses depois da minha primeira cena (sim, exatamente seis meses), dia 22 de fevereiro, fiz a minha primeira sessão com um cara com o qual tive uma Ds TPE até o começo desse ano. Acho que foi isso.

Snow: Pony play realmente se encaixa no pet play ou é totalmente diferente?

Equina Nur: Se pet play é qualquer fetiche ou dinâmica em que uma das partes adota o papel de um animal, sim. Mas como a maioria das pessoas do meio nunca conviveu com cavalos, o pessoal acaba tendo como referência a convivência que teve com cães e gatos para pensar o que é pet play. Nesse sentido, a dinâmica com um pony pode ser bastante diferente do que as pessoas imaginam como pet. É muito comum você jogar uma bolinha e o gato bater com a patinha, o cachorro pegar com a boca. Claro, tem vídeos de cavalos que brincam com bolas, mas a regra é a pessoa pilotar o cavalo como um veículo ou motor de um veículo (charrete). Claro, esse “veículo” é um animal com vontade própria e personalidade, mas ainda sim algo a ser pilotado por nós. Então é bastante comum a relação de pony play com objetificação e bondage, como em House of Gord, como uma potência a ser restrita para utilização adequada. Mas também vão ter os que focam no fato de ser um bicho lindo ou fofo. Alguns vão jogar com pegada SM, com o pony sendo subjugado e posto para trabalhar até a exaustão de forma degradante e dolorosa por puro sadismo. Tem os que vão curtir ser escravos sexuais e ainda os fetichistas que vão querer se exibir de pony no meio da rua. Por fim, alguns têm experiência com cavalos reais e aplicam os mesmos princípios de contato de rédeas e treinamento para sessão de pony play. Tem quem goste da ideia de continuar “sendo gente” e ser humilhado sendo tratado como se fosse um cavalo. Outros mudam de estado de consciência quando jogam, o que lá fora chamam de pony headspace (gosto de chamar de estado de consciência equino). E claro, gente que joga com a mistura de dois, três, quatro desses elementos.

Miguel Valentim: Cena em público tem algum efeito colateral (preconceito) além da estranheza já esperada? Ou na maioria das vezes é tranquilo?

Equina Nur: Quando faço cenas públicas em geral estudo o lugar antes. Além de segurança, também busco ambientes com frequentadores mais reservados e que não vão tentar interferir com o que estou fazendo. Eu não iria vestida de pony, por exemplo, no centro da cidade (moro em São Paulo), pois é um lugar em que as pessoas provavelmente gritariam para mim ou tentariam me tocar. Além disso, sempre tem alguém filmando, o que pode fazer parecer que estou só gravando uma cena para algum material gráfico. Em geral não tenho problemas. Já teve pai pedindo que o filho não encostasse explicando “não pode encostar, filho, é arte”. Gente perguntando onde iria sair. Gente curiosa filmando. O maior problema que tive foi um guardinha de parque que ficou nos perseguindo e pediu para pararmos, quando estava puxando charrete. Depois confirmei com a administração que realmente não havia problema e tenho um acordo com eles de avisar por e-mail antes de ir para que eles comuniquem aos seguranças que não devemos ser reprimidos.

Snow: Qual seu maior prazer dentro do BDSM?

Equina Nur: Ser controlada e, dependendo muito da confiança que eu tiver no Top, degradada. Essa segunda opção é bastante rara, porque preciso de condições muito específicas para isso acontecer. No “ser controlada” entra a prática de pony play, entra bondage e entra objetificação, por exemplo.

Snow: Uma coisa “normal” mas que você acha horrível dentro da sua prática?

Equina Nur: Olha, acho que a única coisa horrível é quando alguém quer praticar pony comigo sem realmente ter tesão nisso. É o caso de quem tenta para me agradar, que chega com uma ideia escalafobética que não tem como ser realizada na prática ou que está tentando me ganhar. Nesses casos, prefiro que o Top seja franco e façamos outra coisa. Mas se é um Top que chega de boa e quer experimentar com uma ideia mais simples pode ser muito legal.

Snow: Tanto se fala de redflags, mas existem poucos métodos de identificar antes de um possível estrago. Você tem algum método de identificação? Qual?

Equina Nur: No começo eu não tinha, mas fui percebendo que, com raras exceções, é só observar as mesmas coisas que eu observaria num contexto baunilha. Se a pessoa está me apressando para decidir ou entrar numa relação, é porque ela não sabe esperar o tempo das coisas ou não percebe que a gente precisa de tempo para entender onde está se metendo. Se ela está muito em cima de mim é porque ou não tem vida, ou é obsessiva, ou já está aficionado sem a gente nem se conhecer direito ou é uma pessoa impulsiva que não consegue se acalmar e dar tempo ao tempo. Se fica me cobrando ser tratada como autoridade é porque não para para pensar que é necessário eu conhecê-la e entender como ela se comporta antes disso. Se recebe a notícia de que fiz algo bem ou que me deixou feliz com crítica é porque é alguém que lida com o medo de não ser importante para mim tentando me botar para baixo. Se começa a ficar crítico logo após uma primeira sessão, é porque é possessivo. Se me trata com muita formalidade logo de começo, não sei por que fico com a impressão de que ou me idealiza, ou tá enrijecido num papel ou talvez vá passar dos limites uma vez que não houver mais aquela formalidade. Se chega botando banca ou se sai falando que quer me dominar ou me quer aos pés sem eu antes ter me inclinado e começado a ter um comportamento servil, é alguém que tá só vendo o próprio tesão e não sabe ler sinais.

Além disso, tem algo importante que é o quanto a pessoa sabe ser detalhista de forma objetiva e não pedante a respeito do que quer, do que faz e de como funcionam as coisas para ela. Se ela não é atenta aos detalhes eu começo a me preocupar com como ela lida com a técnica do que vai fazer, como percebe questões de segurança e lida com isso, o quanto é capaz de prestar atenção aos detalhes do que estou falando e como vai ser para conversar com essa pessoa quando houver algum problema. É mais ou menos por aí.

Snow: Qual a maior decepção que você teve desde que começou?

Equina Nur: Foram duas na verdade. A primeira é o quanto tem gente maluca que caga-regra no prazer dos outros nesse meio, eu esperava pessoas com posturas bem mais libertárias. A segunda foi o quanto é difícil encontrar gente que seja específica para fazer acordos, que os cumpra e renegocie caso não esteja funcionando. Na nossa cultura brasileira, em que assertividade, ser específico e detalhista são características malvistas, a gente acaba tendo que escolher muita coisa no escuro.

Miguel Valentim: Falando sexualmente. O mundo baunilha ainda lhe traz prazer?

Equina Nur: Prazer dá. Ia dizer que nunca mais tive vontade, mas hoje, por coincidência, tive vontade de transar com um cara por transar. Mas o cara é dominador, portanto não sei se conta muito. E por falar em “baunilha”, morro de vontade de traduzir a expressão “vanilla” por “feijão com arroz” ao invés de “baunilha”. Tá, a tradução literal é “baunilha”, mas em termos de cultura, você precisa de uma explicação aqui para entender. Já “feijão com arroz” é algo que todo mundo sabe imediatamente o que é, sem a menor necessidade de explicação. Acho bem mais fácil de entender “tem os praticantes de BDSM e tem os feijão com arroz” do que “tem os praticantes de BDSM e tem os baunilha”.

Miguel Valentim: Que portas se abriram e quais se fecharam quando adentrou no BDSM?

Equina Nur: Muitas portas se abriram. Me estabilizei, descobri prazeres que têm muito mais a ver comigo, conheci pessoas lindas, abriu-se uma janela para algumas coisas da vida que eu não sacava, comecei a me sentir mais confiante, mais forte, mais resiliente. Posso honestamente dizer que, apesar de alguns problemas, tem sido um caminho terapêutico. E sendo ateia, pony play e outras coisas que vivi foram os mais próximos que encontrei de religião. Portas fechadas? Bem, posso dizer que toda essa libertação me ajudou a fechar portas para pessoas e situações que não me faziam feliz.

Miguel Valentim: Muito se fala em coito no BDSM. Existe o coito no pony play ou apenas a dinâmica? Qual a importância tem pra você?

Equina Nur: Às vezes a gente esquece que práticas BDSM só são fantasias postas em ação por duas ou mais pessoas que estão com vontade disso. Coito é só um dos muitos atos ou práticas que podem ser incluídos dentro de qualquer sessão. Ou fora dela, numa lista de limites. Depende do gosto do freguês. No meu caso específico, se eu estiver fazendo sessão com um homem por quem eu tenha muito tesão, gosto de transar ao fim dela. Durante a sessão é sempre algo bastante degradante, portanto só topo com caras em quem eu confie muito. Tenho um pouco mais de flexibilidade com relação a outras formas de penetração (dedos, objetos), mas é algo restrito à prática com homens. Coloco isso de “com homens” porque sou hétero (na verdade hétero flex), mas pony play é algo que topo com qualquer um que goste muito de pony, independente do gênero da pessoa.

Miguel Valentim: Consegue hoje se imaginar sem o pony e o BDSM em sua vida?

Equina Nur: De forma alguma. O pony foi a coisa mais próxima à religião que encontrei na vida, tenho uma paixão enorme por isso e é algo que me permite viver situações fantásticas e adentrar um mundo muito diferente do meu usual. E BDSM foi como abrir uma porta para coisas que nunca imaginei sentir e não consigo conceber, ao menos atualmente, voltar atrás. Sempre tive uma vida sexual “esquisita”, para dizer o mínimo, eu estava sempre buscando adrenalina e vivi algumas experiências que hoje vejo que eram basicamente relações de dono e posse. Então ir descobrindo possibilidades nesse meio de repente me deu algo que nunca tive na vida: estabilidade. Por quê? Porque posso fazer tudo quanto é loucura de forma estruturada e responsável, sem precisar sair bagunçando minha vida.

Além disso, erotismo é uma obsessão na minha vida há muitos anos também do ponto de vista intelectual e profissional. Sou psicóloga clínica e atendo principalmente queixas sexuais (chame de sexóloga se quiser). Fiz especialização em sexualidade humana na USP e outros cursos na área, inclusive no exterior, e agora estou num mestrado pesquisando BDSM. Não paro quieta com isso há mais de 15 anos. Então tô que nem pinto no lixo, empregando esse gás tentando produzir materiais de qualidade para a comunidade em português. Tenho um blog no medium, onde posto tudo. Não ganho centavo algum com isso, mas é muito emocionante.

Miguel Valentim: Você se declarou ateia mas podemos dizer que você define seu animal, seu totem. O que realmente significa pra você? Ou é apenas uma prática de prazer?

Equina Nur: Então, “totem” vai ser o jeito de olhar para minha prática de quem acredita nisso e, como não conheço muito esse forma de pensar, alguém teria que me explicar. Outras pessoas vão achar que tem uma égua em mim. Outros vão achar que estou possuída. Outros ainda vão achar que sou é uma desequilibrada delirante por sair no meio da rua “fantasiada” de cavalo. O jeito que eu vivo isso é que não sei exatamente como e nem porque, quando sou tratada como cavalo a minha consciência de mulher fica como que “enterrada” dentro de um corpo que reage mais aos gestos e sons do que às palavras. E essa consciência de mulher semi adormecida fica presa lá dentro, observando o que acontece e tendo pouca possibilidade de ação. E poder viver isso sempre me centra e me faz voltar com mais energia. Fora a sensação de conexão com a vida. Mas claro, estou falando de quando pratico com alguém que teve contato com cavalos reais durante a vida e realmente me tratam como se eu fosse um. Jogos com dominadores que curtem pony de outras formas tem um efeito menos “espiritual” em mim.

Snow: Pra você qual foi a maior perversão feita com o BDSM na atualidade?

Equina Nur: A maior perversão para mim é criar regras de como os papéis devem ser exercidos, porque isso é um risco para a consensualidade. Se faz coito com a ponygirl? Uma escrava pode falar com outros dominadores? O bottom tem que chamar todo Top de Senhor(x)? Se a gente tá visando consensualidade, ou seja, que tudo o que acontece tem que ser acordado, todas essas perguntas têm uma só resposta, que é: “depende do que é acordado naquela sessão, cena, relação, evento ou grupo”. Quando criamos regras universais, no estilo “todo bottom deve” ou “submissa de verdade faz isso ou aquilo”, estamos dizendo aos outros que eles não podem fazer acordos diferentes dos nossos. E aí criamos um ambiente no qual quem está mais fragilizado pode se sentir incapaz e inadequado. Ou pior, um ambiente em que pessoas se forçam a situações que não vão fazê-las feliz. Nada impede que alguém crie um grupo ou evento em que a regra é que o bottom chame todo Top de Senhor(x), mas as pessoas devem saber que essa é uma entre tantas possibilidades. E aí tem-se um outro ganho que é só ficarem naquele grupo ou estilo de vivência as pessoas que se identificam com aquilo de corpo e alma. Mas claro, a gente tem que seguir regras gerais de que tudo deve ser feito com consentimento, conhecendo os riscos e não ferindo a integridade física ou emocional de quem joga para além do que a própria pessoa deseja.

Snow: Das TPE, EPE etc. Qual você acha mais interessante ou que melhor se enquadra no jogo?

Equina Nur: Qual é melhor? Não sei, acho que cada encontro entre duas pessoas que querem viver pony play é único. Pony play pode ser vivido em qualquer um desses modelos, mas no meu caso atualmente fica no EPE. Já tive uma relação de pony PPE. Morávamos em cidades distintas, mas eu tinha que relinchar todos os dias por WhatsApp para minha treinadora assim que acordasse, logo antes de dormir e tinha que treinar meus movimentos e enviar vídeos para o escrutínio dela. Numa metáfora, Nur, a mulher, é a terra. A égua é o mar. Na EPE, a égua é um rio correndo, separado da Nur. No PPE, a Nur é a terra, a égua é o mar e tem sempre aquela faixa de areia empapada de água que é a mistura das duas. Mas PPE exige tempo e com trabalho, mestrado e outras atividades, eu não conseguiria dar conta nesse momento. Além disso, exige uma relação de confiança com alguém que queira ser Top nesse tipo de dinâmica, o que é bastante raro. Uma dinâmica TPE aí acho que só sendo posse de alguém que quer exclusividade de mim enquanto pony, porque não dá para viver como pony o tempo todo, ao menos para mim seria algo insano.

Snow: Agora falando de preconceito. O que você acha deste monte de normas, militância cega, hoje existentes, que trazem para o BDSM, onde tudo está se tornando homo, hétero, gordo, magro fobia e etc.? Onde tudo está se tornando “crime”.

Equina Nur: O preconceito está tão mesclado no nosso discurso que muitas vezes não percebemos, principalmente quando o alvo do preconceito não é a gente. O que acontece agora é que a internet facilitou que pessoas alvo de preconceito trocassem experiências e se sentissem mais fortalecidas. Nós, praticantes de BDSM nesse grupo de WhatsApp somos exemplos disso. Imagina como seria se a gente tivesse no fim da década de 80, sem textos para ler de gente como nós, sem ninguém com quem a gente pudesse conversar a respeito, sem imagens. Digo isso porque dei uma bela pesquisada na história do BDSM aqui no Brasil e convivi com a Mistress Barbara Reine no fim da vida – foi a mulher que criou o primeiro grupo organizado de BDSM no começo da década de 90, que promovia munchs, workshops e play parties. Ela me contou muita coisa e, enfim, o preconceito contra gente como nós e o isolamento era absurdamente maior.

Mas voltando ao tema, o fortalecimento dos diversos grupos estão fazendo a gente viver numa espécie de ONU, como se fossem várias culturas muito diferentes convivendo juntas. E aí alguém fala algo sem a menor intenção de ofender ninguém e de repente outra pessoa se sente profundamente ofendida. É chato? Sim, é. Mas ou a gente aprender a ser diplomático ou vai ficar passando por esse tipo de situação. E o que quero dizer com aprender a ser diplomático? É aprender essas outras culturas, como você faria se fosse num país diferente do seu – e às vezes você até descobre que tem coisa muito legal numa outra cultura.

E tem também, a meu ver, uma questão geracional aí. As gerações mais novas são mais sensíveis que as antigas. Junta essa sensibilidade com acesso à informação e você tem uma galera que sabe argumentar muito bem. Apesar de ter quase quarenta, me identifico muito com a moçada de vinte e poucos nesse sentido. Mas estou mais quieta por uma mistura de estar mais velha, mais confiante e priorizando coisas diferentes. E, no fim das contas teremos todos que nos adaptar a esse novo mundo, não tem muito o que fazer.

Miguel Valentim: Mas acha que com esse aumento de informação também veio uma leva de gente curiosa e que não leva tão a sério?

Equina Nur: Até meados da década de 90, quando não havia internet, praticantes de sadomasoquismo (porque na época era assim que se dizia) se encontravam por meio de anúncios em revistas eróticas. Então você tinha que comprar a revista erótica, ler um anúncio pequenininho sem foto nem nada, escrever uma carta para a caixa postal da pessoa (as pessoas alugavam caixas postais no correio para não receberem cartas em casa), esperar dias ou semanas para ela te responder e tomar coragem para conhecer uma pessoa da qual você não tinha nenhuma outra informação. Quem vai entrar nessa? Olha o risco disso, só quem estiver muito a fim.

Mas ao mesmo tempo, você também só arranja vídeos e textos sobre isso no exterior e tem que pagar muito caro por isso, então você vai praticar sadomasoquismo (usando o termo da época) sem nem um tipo de informação ou técnica além daquilo que você e a outra pessoa tiraram da própria cabeça. SSC só se popularizou mundialmente a partir de 1993 e ainda demorou para pegar por aqui. Então e aí? Sim, vai ter a leva que não vai viver isso de uma forma não tão intensa, talvez para apimentar a relação, talvez de fim de semana. Mas acho que é um preço pequeno a pagar por um cenário em que as pessoas têm muito mais subsídio para tomarem decisões melhores e mais conscientes.

Snow: Quais os riscos à saúde que existem e podem ser evitados com simples ajustes na prática de pony play?

Equina Nur: Primeiro, é necessário que a prática seja pensada de acordo com o nível de condicionamento físico do pony. Segundo, se você quer um calçado de salto ou em formato de casco (alto, mas sem o salto para apoiar), você deve verificar o terreno e tomar cuidado para exigir do pony algo que não o desequilibre. Bridões de metal podem trincar ou quebrar dentes caso o pony caia, então caso seja um iniciante melhor começar com um de borracha (ou um pedaço de mangueira atóxica com uma tira de couro passando por dentro para fixar). Se o Top estiver segurando o pony pelas rédeas e o pony cair, solte as rédeas, porque se você segurar uma pessoa pela cabeça enquanto ela cai você pode quebrar o pescoço dela. Além disso, em treinos em que o Top fica no meio com a rédea presa só de um lado e o pony andando em círculo em volta, lembre-se que você está forçando a cabeça do pony para um lado só. Faça ele ir para os dois lados. Verifique problemas de joelho, tornozelo e condicionamento para fazer um pony saltar.

Com charrete, verifique terreno e evite descidas, porque o freio da charrete é o pony (no Brasil não temos charretes com freio como nos EUA ou Europa). Se o pony não conseguir frear a charrete imagina o acidente terrível que pode acontecer. Verifique também se a charrete foi bem construída e o assento está em cima do eixo da roda. Construída dessa forma, o pony não terá peso nenhum apoiado nele e só precisará puxar. Se desbalanceada, pode pesar na lombar do pony.

Agora, em termos de riscos afetivos, é importante conversar para que estejam claros desejos, limites, se é um pony que entra em estado de consciência equino (pony de headspace), se não e que tipo de cuidado após a sessão (aftercare) o pony em questão necessita. O cuidado não é o que a gente quer dar, o cuidado deve levar em conta o que aquela pessoa precisa.

Snow: Quais aspectos do fetiche você leva pra sua vida pessoal?

Equina Nur: Muita coisa mudou na vida pessoal, acabou tendo uma forte influência de pony. Comecei hipismo e comprei um cavalo por causa disso. Tem a charrete que é desmontável e fica dentro do armário do meu quarto, armário este que fica trancado à chave por causa da faxineira. E acabei voltando a ter carro para poder levar a charrete para cima e para baixo. Comecei ballet por causa de um par de ballet boots que ganhei, mas no fim das contas tem ajudado demais em ser uma égua mais sólida. De vez em quando uso botas sem salto em casa para fazer coisas como lavar louça.

E poder ser égua me centra. Um dia, estava indo de metrô para um lugar e estava com a cabeça muito ansiosa e angustiada. De repente, meio que naturalmente, comecei a imaginar que estava usando minha cabeçada (o arreio de cabeça que segura o bridão na boca) e havia alguém atrás de mim segurando as rédeas, virando minha cabeça na direção que eu tinha que ir e regulando minha velocidade. Não preciso dizer que me acalmei consideravelmente, porque era a sensação de que eu não precisava controlar tudo porque havia “alguém maior” no controle daquela situação.

Além disso, tenho sonhos de ponygirl às vezes quando durmo. Sonho que tem alguém segurando minhas rédeas, já sonhei que estava em uma fazenda de ponygirls e era uma linda pony de látex toda preta e uns meses atrás, acabei não contanto para Rê Kessel, sonhei que estava puxando ile de charrete numa espécie de arena, aí várias coisas aconteciam depois. Pois é, ponygirls também sonham.

Snow: Qual a história mais engraçada te aconteceu em termos de mal entendido?

Equina Nur: Puxa, história engraçada com mal entendido não me lembro. Mas um tempo atrás ficou uma luva de casco fora do armário e a faxineira deixou bem visível no móvel do lado da cama e eu quase desmaiei quando vi. Tá, não foi engraçado, mas não sei por que quis contar.

Snow: A proposta mais insana que recebeu?

Equina Nur: Teve um cara que queria que eu enrabasse ele vestida de cavalo usando um dildo desses gigantescos de borracha. Tô me sentindo meio estranha de contar essa história porque o cara morreu (não disso). Ele era legal (mas obviamente eu não topei, fiquei só bastante constrangida).

Snow: Projetando um pouco para o futuro. Como você imagina que será o BDSM daqui a uns cinco anos?

Equina Nur: A leva de iniciantes que está entrando agora tem muito mais material de qualidade em português sobre BDSM do que o pessoal há três anos. Teve uma explosão de produtores de conteúdo e me arrisco em dizer que tenho uma participação nisso (pelo menos gosto de pensar que tenho). Além do mais, tem uma turminha que, ainda por cima, lê em inglês. Então acho que daqui a cinco anos a gente estará mais avançado do que hoje no entendimento do que é consensualidade e na postura de respeitar dinâmicas diferentes das nossas próprias.

Miguel Valentim: Ainda sobre consensualidade, existe muita diferença do pony pro BDSM?

Equina Nur: Cada prática tem suas especificidades e questões a levar em consideração, tanto na negociação quanto durante a prática, para garantir que aquilo que aconteça não ultrapasse o limite de ninguém. Vou falar dessas especificidades do ponto de vista do bottom. Primeiro, tem o que é comum a qualquer prática BDSM. O de sempre. Imaginar o que se quer viver na sessão ou relação e o que não se quer que aconteça de jeito nenhum nela (limites). Tendo tudo isso claro (principalmente o que você não quer que aconteça), conversar com um Top a respeito para ver se bate. De preferência um Top com quem o bottom conviveu, que outras pessoas conheçam, que dê para confiar, que saiba respeitar acordos e preste atenção aos detalhes necessários para evitar consequências indesejadas, como por exemplo o bottom cair e se machucar.

Aí é conversar sobre se fora a prática do pony vai ou não ter hierarquia na sessão, se e como o bottom precisa ser cuidado depois (aftercare) e os detalhes de como funciona o pony headspace se o bottom for esse tipo de pony (já falo disso). Se for cena em espaço público, como rua ou parque, se alguém tem alguma questão com relação a rosto ou tatuagens aparecerem, locais a serem evitados pelo risco de cruzar com conhecidos baunilhas e tal. Caso tenha alguma preocupação ou dúvida de como o Top lidará ou lidaria com alguma situação específica, o bottom tem que perguntar. Se tudo isso der “match”, aí é combinar uma palavra e um gesto de segurança (porque provavelmente o bottom estará com um bridão entalado na boca) e partir pro abraço.

Voltando ao pony headspace, é um estado de consciência em que a pessoa pensa, sente e reage de forma diferente. Alguns ponys vão ter essa “virada de chave”, outros não. Para quem tem, é importante falar sobre o que faz entrar nesse estado, o que é necessário para trazer de volta, se é fácil entrar e sair ou se um dos processos é mais difícil, o quão distante de um pensamento humano o pony fica e assim por diante. E aí entra também a importância de ser um Top confiável. Imagina você, bottom, preso num outro estado de consciência nas mãos de um irresponsável? Alguém despreparado pode, mesmo sem querer, acabar atentando contra sua vontade, ou seja, seu consentimento, num momento de vulnerabilidade.

Snow: Qual o maior prazer da prática pra você?

Equina Nur: O jogo, para mim, tem muito a ver com estar nas mãos de alguém que irá controlar cada passo que eu der. E a pessoa faz isso por meio do equipamento. Tem um arreio de couro preso à minha cabeça segurando um bridão de metal na minha boca. Em cada lado desse bridão fica presa uma rédea, que o Top segura nas mãos. Então minha cabeça fica literalmente nas mãos dele. E as minhas mãos estão cerradas em punho dentro de luvas de látex em formato de casco de cavalo, então eu não tenho mãos. Se o Top quer que eu vire para direita, ele vira minha cabeça para a direita puxando a rédea para a direita. O mesmo para esquerda. Se quiser que eu pare, puxa a rédea para trás. Se quiser que ande, faz barulho de beijinho (não preciso de chicote porque já sou agitada).

O meu trabalho é simplesmente reagir. Fora isso, não há nada mais que eu tenha que fazer. Um Top que tenha experiência com cavalos reais em geral consegue que eu obedeça muito bem, porque sabe provocar as reações necessárias para que eu faça o que ele quer. Minhe partner Rê Kessel é assim e um Top que é meu crush também. São pessoas com as quais tenho sintonias muito interessantes. O prazer é o de ser como se fosse uma marionete inconsciente na mão dessas pessoas. E gosto muito da sensação de restrição, de estar sem mãos, de estar presa à charrete. Também gosto da sensação de que é uma mega intimidade, porque a pessoa me controla pela boca e cabeça, mas ao mesmo tempo com uma distância que fica meio fria, porque a pessoa não encosta em mim nem fala comigo. Então há uma sensação de objetificação. Também gosto da sensação de estar excluída das trocas humanas, deixada de lado até que precisem de mim de novo. Por isso, adoro ser estacionada.

Mas claro, curto pony play em modalidades diferentes, então já joguei com Top que colocou armbinder em mim e me fez andar com botas de salto fantasma. Se eu caísse era direto para o hospital, o que transformou a situação num frisson enorme. Também já joguei com Top que tinha ênfase em que eu obedecesse a comando verbal (aí fui com a cabeça de mulher mesmo) e andasse exatamente do jeito que ele queria se não era punida e ele falava comigo meio por trás com voz ameaçadora. Enfim, acho que existem tantos prazeres com isso quanto jogos possíveis.

Miguel Valentim: sempre morei no interior e é costume trocar o chicote por grito já que a audição equina é maior que a nossa isso funciona também no pony?

Equina Nur: Se gritarem comigo é capaz de eu sair correndo desenfreada e me machucar. Iria me assustar muito ou me deixar num estado de ansiedade horroroso. Mas talvez com um cavalo mais frio funcione bem, vai saber.

Snow: Pra terminar, infelizmente, porque eu ficaria a noite aqui …a pergunta q não pode faltar: qual conselho pra quem tá se descobrindo, iniciando no BDSM em geral e também para os que pretendem praticar o pony play?

Equina Nur: Preste atenção às suas fantasias, ao seu tesão e foque no que você quer. Cerque-se de pessoas que te estimulem e de gente que faz você se sentir bem. Aquele tipo de pessoa que sabe te dar um toque ou fazer uma crítica de um jeito que você se sente cuidado, sabe? Confie no que você sente, se você não está se sentindo bem numa situação é porque há algo errado. Se você curte pony play e não é do meio do cavalo, frequente hípicas, veja os tratadores dando comida aos cavalos, faça uma aula de equitação nem que seja para sentir qual é. Veja vídeos de pony, fotos e lembre-se que o jeito certo de praticar pony play é o jeito que realiza as suas fantasias. O parâmetro é o seu prazer e o bem estar de quem joga com você. E vá em frente porque tem muita coisa legal a ser vivida ainda.


Você encontra Equina Nur em:

Instagram: @equinanur
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Agradecimento especial aos administradores do Grupo Alcateia:

Miguel Valentim
Snow

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Uma resposta

  1. Muito interessante a entrevista. Vejo que o Pony Play é menos divulgado mesmo dentro do universo BDSM. E é uma prática como outra BDSMer, só que menos conhecida. Sempre me interesso por aprender algo novo, e o artigo me proporcionou alguns aprendizados. Valeu muito!

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