Eu sinceramente espero que você não tenha explodido os neurônios no último texto que publiquei aqui sobre o Sadismo, Masoquismo e Sadomasoquismo. Mas foi necessário! Abordar o contexto histórico desses termos e suas respectivas razões quebram muitas das ‘nossas verdades’ dentro da atual compreensão do BDSM. Entender o porquê do ‘SM’ ter essa visão criminatória, errada, e toda a má compreensão social de dentro e fora da comunidade. Hoje irei abordar a influência das palavras no nosso entendimento de mundo e dos objetos na nossa vida como praticantes e botar mais lenha nessa fogueira. Me acompanha?
Antes de tudo! Como você deve ter lido aqui, eu sou o colunista de sábado e tenho como objetivo apresentar algumas linhas de raciocínio, construções e fatos ao longo da nossa história a fim de enriquecer as bases epistemológicas dos praticantes. Não me posiciono como o portador da razão, muito pelo contrário, apenas um pesquisador que sempre está encontrando coisas novas e adoraria dividi-las com todo mundo.
Intercalando minhas colunas de sábado, também colocarei análises críticas de filmes e livros que influenciaram a nossa cultura e hoje é dia de recomendação cinematográfica, então, fica de olho no final!
Preparando o terreno:
Para começar essa reflexão e discussão, precisamos atentar para um ponto importante: estou escrevendo esse texto em português e o nosso idioma possui algumas armadilhas, nas quais todos estamos propensos a cair. Seremos livres quando conseguirmos reconhecer essas armadilhas e evitá-las corretamente.
Para ficar um pouco mais claro, nós só passamos a considerar a existência de algo depois de associarmos algumas palavras com aquilo. Por exemplo, estou me comunicando com você através da junção de alguns símbolos que você conhece e fazem sentido para você. Enquanto você lê, você repete cada um desses símbolos (letras) e forma frases e isso passa a fazer sentido porque seu cérebro vai fazendo as devidas conexões para entender o que esses símbolos querem dizer.
No entanto, se eu apresentar algo completamente abstrato e diferente a você, ainda será através das palavras que você procurará a lógica do que estou apresentando e quando associarmos uma palavra com isso, você passará a usar essa palavra para descrever aquilo. Por exemplo, você não precisa falar que segura um objeto ‘cilíndrico que emana uma luz e aquece para se localizar’, a composição ‘uma vela acesa’ já resume tudo e te dá ainda mais noções do que estava tentando dizer. Você provavelmente se lembrou de uma série de vezes que viu uma vela acesa, seja ao vivo, foto ou em um filme.
Então, é fácil compreender que nós pensamos em palavras, nos comunicamos através de palavras e se não existe uma palavra para descrever algo, seja o que for, aquilo não existe para nós. Até mesmo palavras em outros idiomas, se você não sabe o que é, aquilo simplesmente não existe para você e só passará a existir quando você compreender o que é (e fizer as devidas associações).
Seguindo essa linha de raciocínio, se torna lógico entender como as palavras moldam a nossa compreensão da realidade, pois elas delimitam a nossa margem de compreensão para o nosso cérebro.
Deixo agora o TEDx rapidinho e extremamente necessário da cientista cognitiva Lera Boroditsky que aborda como a linguagem modifica nossa forma de pensar:
Então, pense comigo: o binarismo do nosso idioma (o masculino e feminino nas palavras) constrói uma falsa dicotomia com a realidade. No mundo que conhecemos, as coisas não possuem só dois lados, mas para o nosso idioma sim e isso acaba reforçando os estereótipos sociais.
Uma sugestão simples: a palavra ‘gentileza’, é um substantivo feminino. O que isso te induz a pensar? Homens gentis são menos másculos, mulheres femininas são gentis. Esse é apenas um exemplo de como as palavras são capazes de mudar nossa compreensão. Não é novidade que, em nosso idioma, as figuras, palavras e expressões de poder são masculinas, portanto, desassociar poder e dominação desse aspecto é um desafio constante. Não estou falando que devemos mudar o idioma (talvez sim, talvez?), mas mudarmos os termos.
Então, quando o Krafft-Ebing cunhou a palavra “masochism” (masoquismo) e associou o nome do autor do livro “A vênus das Peles” e relacionou a condição do Severin a “essa patologia” e foi igualmente inconsequente criando o termo “sadomasochism” (sadomasoquismo) para retratar o outro lado da moeda, como aquele que tinha uma “patologia sexual” para infligir dor e/ou comandar. Criou-se dois estigmas extremamente delicados que nos influenciam: nós passamos a exercer o que essas palavras querem dizer e reduzimos tudo a apenas duas possibilidades.
Falando bem resumidamente, para Freud, nossa personalidade começa na exploração da sexualidade ainda na infância, então, se existem duas patologias sexuais, elas irão acarretar dois transtornos de personalidade, sendo um agressivo e masculino, o transtorno de personalidade sádica, e o sugestivo e feminino, transtorno de personalidade masoquista.
Daqui em diante, a palavra ‘sádico’ e ‘masoquista’ foram para ações no cotidiano, como um fator da sua personalidade e do seu dia a dia, fugindo completamente do campo sexual e, pior, se distanciando grosseiramente de sua origem.
Esse pensamento nos leva a dois enganos: não podemos ser sádicos (como sexualidade) e ter uma personalidade masoquista (seguindo a ótica da psicanálise), tão pouco termos uma sexualidade masoquista e também termos uma personalidade sádica.
Você que está entrando no BDSM ou está a mais tempo com certeza já esbarrou em algum texto ou comentário determinista que diz, nas entrelinhas, como são as posturas e condutas de um sádico, e como é a personalidade de uma pessoa masoquista, mas sempre dentro da ótica do BDSM, que deveria se preocupar com o campo sexual. Como estamos falando da pessoa no cotidiano, qual é a relação desses dois assuntos? É algo fora do que o BDSM abraça.
Ainda na tentativa de elucidar essa análise, há alguns equívocos do ponto de vista dos praticantes que resumem a personalidade da pessoa no dia a dia atribuindo a ela uma posição dentro do BDSM, como se a pessoa que tem um cargo de gerência no trabalho ou é ‘mandona no cotidiano‘ deve ter uma relação direta com sua postura sexual, sendo ela dominante ou dominada. Não preciso dizer que essa simetria, não possui lógica, né?
Nadamos em erros quando um TOP é grosseiro com outra pessoa alegando que, ‘por ser sádico’, isso justificativa o seu péssimo comportamento e o bottom masoquista se posiciona sempre como vítima indefesa nas práticas.
Não deve ser nenhum fator externo que determina qual a sua orientação sexual. Por exemplo: a personalidade não define a orientação sexual, logo nem todas as lésbicas que conheço possuem a mesma personalidade, então porque uma pessoa que é mandona deve ser dominadora no BDSM? Quem deve dizer sua orientação sexual no BDSM é o próprio praticante e cabe a nós, como comunidade, não questionar sua posição.
A performance!
Se o senso comum diz que o sádico é grosso e agressivo, então, uma pessoa que se identifica sexualmente com o que chamamos de ‘sexualidade sádica’ irá reproduzir um comportamento que represente o seu sadismo e, consequentemente, autorize e reverbere sua posição dentro do BDSM, o nome disso é performance e fazemos isso o tempo todo.
A filósofa norte-americana Judith Butler publicou uma série de artigos sobre esse assunto e elucidou bastante a percepção de performance de gênero na nossa sociedade, dizendo que não, nós não somos o que somos, socialmente falando nós aprendemos a ser “homens” e “mulheres”. Respondemos ao que esperamos de nós o tempo todo.
Então, um sádico, tal como um masoquista, reproduz exatamente o mesmo comportamento social que nos foi apresentado, matando sua própria personalidade e criando a partir daqui um ambiente extremamente nocivo para que aquele sádico ou masoquista viva durante longos anos. Preciso dizer que o divã do psicólogo geralmente é uma ótima saída para quem vive durante anos performando e começa a esquecer-se de quem realmente é, pense nisso!
Para evitar essa performance que nos foi apresentada, a comunidade buscou modificar alguns dos nomes se afastando da área médica e patológica que rondava o BDSM, mas ainda estamos ‘no começo’ desse processo e somos minoria. Mas nós não performamos apenas com as palavras, essa relação também ocorre com os objetos!
Fetichismo da mercadoria:
Parte do meu objetivo com esse texto é fechar alguns conceitos que apresentei nos outros artigos e como elaborei aqui, o ‘fetichismo da mercadoria’‘, apresentado por Karl Marx, na obra O Capital (1867) também relaciona-se com o que estamos vivendo no BDSM, pois é o valor sentimental e social do produto que transmite o ‘poder’, sendo assim, ao utilizar um produto, você passa a ter toda a relação de poder que ele exerce para seus admiradores.
Para Marx, no sistema capitalista, a mercadoria esconde as relações de exploração do trabalho e o trabalhador passa a não reconhecer o fruto do seu trabalho. Dessa forma, a mercadoria se desvincula do seu produtor de tal forma que é como se tivesse surgido sem a intervenção do homem, como se fosse um ‘feitiço’.
Nessa concepção, o valor das mercadorias produzidas e o trabalho do operário se distanciam de forma desproporcional e a mercadoria passa a exercer poder na sociedade do Capital. Assim, quando você adentra o universo fetichista e se vê impelido a usar determinadas peças de roupa ou acessórios, como o couro, o látex, argolas, etc, para frequentar um lugar, por exemplo, você não busca adquirir esses produtos pelo valor de sua produção, mas pelo valor agregado que eles podem proporcionar, pelo status que eles representam. E esses produtos ganham vida própria e se comunicam, sendo mais uma forma de se expressar, além das palavras, da comunicação verbal. Ou seja, quando você se apresenta carregando consigo um conjunto de mercadorias, elas falam por você, elas definem a sua identidade e comunicam o que você gostaria de expressar ao mundo externo.
Paralelamente a Marx, Jung também defenderá a utilização de objetos e símbolos no inconsciente coletivo e na relação do Eu Interior para expressar e formar suas personas. Em O homem e seu símbolo (1964), Jung reforça não só a filosofia marxista como também aumenta os argumentos a favor da performance oriunda da simbologia e dos produtos.
“Judith Butler e Gayle Rubin chegam a afirmar que não é possível falar de fetichismo ou de sadomasoquismo sem pensar na ‘produção da borracha, nas técnicas e nos acessórios usados para manejo de cavalos, no brilho dos calçados militares, na história das meias de seda, no caráter frio e oficial dos instrumentos médicos ou no fascínio das motocicletas’. Relacionadas a tais peças-chaves da vertiginosa cultura material do capitalismo, essas mercadorias desejáveis e glamorosas implicam um poder de sedução que nada deixa a dever àquelas expostas nas inumeráveis prateleiras das lojas de departamento dos grandes centros urbanos.
(…)
Não por acaso, independente da posição ocupada por seus praticantes, a maior parte das práticas eróticas aqui examinadas supõe uma efetiva passagem para o ‘estado de objeto’, que visa transformar as próprias pessoas em mercadorias desejáveis. Aqui, o fetichismo da mercadoria trava um pacto de fundo com o fetichismo sexual, para nos obrigar a reconhecer a singularidade do processo de fabricação, material e imaginário, de um obscuro objeto do desejo.” – Eliane Robert Moraes em Prazeres Perigosos.
A grande discussão:
Para trazer mais luz para essa reflexão sobre as palavras, a sexualidade e o poder que os produtos tem ao nos relacionarmos com eles, eu trago o filme A pele de vênus de 2013.
O enredo conta a história de Thomas Novachek, um diretor de teatro, que está montando uma peça em Nova York e precisa encontrar uma atriz para o papel principal. O filme se desenrola em um cenário único que é o palco do teatro. Após um longo dia de testes para o papel, eis que adentra o teatro Vanda Jordan e, após muito relutar, Thomas permite que Vanda faça o teste e os dois passam a interpretar os papéis de Severin Von Kushemski e Wanda Von Dunayev e é neste ato que a trama se estabelece.
Nesse filme Polanski nos brinda com uma aula de audiovisual, seja nos enquadramentos perfeitos, nos efeitos de cor mais quentes ou mais frios conforme a tensão da cena, ou na sonoplastia evidenciando o poder do som para a narrativa através do ruído da caneta no papel ou da colher mexendo na xícara.
O personagem de Thomas nos é apresentada com uma sexualidade, indiscutivelmente, de submissão, uma vez que independente do papel que ele assume na narrativa, mesmo quando ele tem o poder nas mãos, ele recua, e revela uma identidade submissa. Já na personagem de Vanda não temos elementos suficientes para afirmar que ela é de fato uma dominadora, no entanto, ela nos mostra com maestria como entrar e sair do personagem.
Tomando Jung como referência, percebemos que essa obra fala muito sobre os arquétipos e o poder dos símbolos e como as cenas vão sendo construídas através deles. Ou seja, a narrativa vai se estabelecendo conforme os objetos vão sendo inseridos nas cenas e as personagens vão se modificando através desses símbolos.
Por exemplo, quando Vanda coloca a camisa e os óculos de Thomas ele tem uma reação de estranhamento, pois nesse momento as vestimentas representam um símbolo de sua própria personalidade e Thomas deixa de enxergar Vanda e identifica a si próprio, estabelecendo um diálogo dele com ele mesmo. Ainda nesse aspecto, em outra cena quando Thomas passa o batom para interpretar Wanda Von Dunayev percebe-se como sua personalidade se transforma por conta desse símbolo inserido na cena.
Toda essa simbologia nos remete às personas que criamos para as diferentes situações da vida cotidiana e traz a importância do momento de colocar e tirar a máscara e de criar personagens. É importante ressaltar que, neste momento, entrar no personagem (ou colocar a máscara) ocorre de forma sútil quando empunhamos um objeto (chicote) ou vestimos uma roupa e modificamos completamente nossa forma de falar e andar.
Como eu já citei algumas vezes como sendo fundamental para vivenciarmos nossa sexualidade ‘não convencional’ (Kinky) nas práticas do universo BDSM.
Conclusão:
Ao assistir o filme, perceba como as palavras e objetos mexem com a personagem do Thomas e como performamos os mais sutis detalhes quando entramos em personagens (ou no flow). Mas só fazemos isso no palco? Thomas possui uma sexualidade submissa e ela transparece até mesmo quando ele está em uma posição de comando, pois deseja sentir prazer e ele só alcança isso através da submissão.
Não gosto do Polanski, mas considero esse filme uma obra prima dele, pois além de discutir a obra do Masoch, traz diversos outros contextos que reforçam esse cenário entre sexualidade, fetiches e objetos. Academicamente falando, há muitas discussões sobre ‘a sexualidade kink’, pois as palavras possuem pesos e contextos sociais, então como poderia uma pessoa ‘nascer’ com uma sexualidade relacionada ao poder se ela não foi devidamente apresentada para ele? Deixo aqui a indicação de algumas dessas discussões: Born this way? Is kink a sexual orientation or a preference? e o Is BDSM a Sexual Orientation or Serious Leisure?
Sinceramente, não tenho uma opinião distante da que apresentei até agora. Não medimos o quão homossexual uma pessoa é pela sua personalidade. Uma pessoa calma não é mais homossexual do que uma pessoa estressada, então, não devemos fazer o mesmo com a sexualidade kinky. Em termos sexuais, um praticante não deveria ser considerada mais ou menos sádica ou submissa pela personalidade fora das práticas, assim sendo, para os que defendem esse tipo de relação, então o quanto dessa sexualidade não é fruto de uma performance pela palavra e também pelos símbolos e produtos que usamos em nossas práticas?
Reflitam e deixem seus comentários, vamos discutir!
AUTOR
Mestre Sadic
Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.
Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P
Site: https://mestresadic.com.br
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SADISMO, MASOQUISMO E SADOMASOQUISMO
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Respostas de 3
Sou uma leitora assídua desta coluna e admiradora tua. Minha relação com BDSM é recente, mas sempre fui submissa na cama porque é como sinto prazer. Nesse texto tu abordas muito bem a relação dos objetos e vestimentas com o comportamento humano.
“Mas só fazemos isso no palco?”
Respondo que transitamos por vários palcos em nosso dia a dia, ou seja, estamos frequentemente representando e os objetos e vestimentas que usamos mexem com nosso comportamento sim.
Há alguns anos eu trabalhava numa empresa durante o período tarde e noite e acabava almoçando no restaurante localizado no mesmo prédio com alguns colegas um pouco antes de assumir meu posto. Um belo dia um dos meus colegas falou que era espantosa a minha transformação ao colocar o uniforme e que ele chegava a ter medo de me cumprimentar quando eu estava “fardada” em meu posto. Aquilo me chamou a atenção e comecei a me questionar sobre essa questão. Sou uma pessoa alegre e divertida, mas em minha função de chefia tinha que usar um terninho escuro formal e acabava assumindo um papel que eu acreditava ser o ideal. Hoje continuo com cargo de chefia em outra instituição, mas posso usar jeans e a camiseta com o logo da instituição e ninguém tem medo de falar comigo, kkkk.
Abraço cordial,
submissa marilys
Prezada leitora submissa marilys muito obrigado pela sua postagem, como é enriquecedor descobrir e compartilhar as mais diversas experiências.
Aaah que honra saber que estou contribuindo!
Obrigado pelo comentário e sim, fazemos essa performance o tempo todo, e no BDSM não é diferente, mas nesse caso, a performance entra em acordo com nossa sexualidade para que possamos vivencia-la.
Você percebeu bem o fetichismo da mercadoria, e todos os pesos dos símbolos e objetos, agora imagina o quão forte isso se torna no BDSM, onde lidamos com a libido e também com um chicote ou um couro?