Você está no BDSM e deve ter percebido que as duas últimas letras desse acrônimo são as mais famosas da nossa comunidade. Duas letras que conotam três palavras e possuem um oceano de significados, que além de nem todos serem tão legais assim, também mascaram alguns vilões da nossa história que nos assombram até os dias de hoje e tenho certeza que você já os viu por aí sem nem saber seus nomes. Me acompanha para identificá-los!
Como você deve ter lido aqui, eu sou o colunista de sábado e tenho como objetivo apresentar algumas linhas de raciocínio, construções e fatos ao longo da nossa história a fim de enriquecer as bases epistemológicas dos praticantes. Não me posiciono como o portador da razão, muito pelo contrário, apenas um pesquisador que sempre está encontrando coisas novas e adoraria dividi-las com todo mundo.
Era uma vez…
Um rapaz que escrevia textos muito grandes e publicava no maior site Leather e BDSM do Brasil e que você, provavelmente, já xingou mentalmente todas as vezes em que se deparou com aquelas várias linhas. Mas ainda não me amaldiçoe nesse aqui, eu juro que vai ser mais legal!
Eu sei que você não gosta de textos longos, mas eu preciso que você tenha lido o texto da semana passada e se possível assistido o filme para continuar com esse aqui. Vamos lá, não custa nada! Eu prometo que essa história tem um final feliz! (ou quase)
De antemão para seguirmos essa análise, eu recomendo a leitura desses três livros:
- ‘M(ai)S – antologia sadomasoquista da literatura brasileira’ por Antonio Vicente Seraphim Pietroforte e Glauco Mattoso (2008);
- ‘Prazeres perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade’ por Maria Filomena Gregori (2016);
- ‘Sacher-Masoch: o frio e o cruel’ do Gilles Deleuze (2009);
Irei ao longo do texto reforçar algumas citações presentes neles e, além do texto a seguir, a leitura se faz necessária para compreender todo o universo SM e BDSM que você está inserido.
Analisando etimologicamente as palavras que iremos discutir, o morfema “sado” e “maso” derivam dos nomes de dois escritores, sendo eles, “sado”, do Marquês de Sade e “maso”, do Sacher-Masoch e o morfema “ismo” é um sufixo formador de substantivos, que significa ‘modo de proceder ou pensar’. Assim sendo, “sadismo” seria o jeito de agir e pensar semelhante ao Sade, enquanto “masoquismo” semelhante ao Masoch. Já a palavra “sadomasoquismo” resulta de um processo chamado composição, que define uma palavra através da combinação de outras duas, ou seja, “uma forma de pensar e agir tanto como o Sade quanto como o Masoch“. Isso faz sentido? Vamos descobrir!
O sadismo:
Se você clicou na palavra “sadismo”, você foi redirecionado para o dicionário online que contém o senso comum (baunilha) da palavra sadismo que também influenciou a percepção da nossa comunidade (o BDSM) que parte do ponto de vista de que as atitudes dominantes (TOP) tendem a ter uma conotação sádica, que seria então uma relação de opressão e que gere dor na pessoa submissa (bottom).
Bom, vamos lá: A palavra Sadisme (sadismo) entrou no dicionário francês (Dictionnaire universel de la langue française) em 1834, pelo Pierre-Claude-Victor Boiste e Sadique (sádico ou sadista, que por sinal, é a origem do meu pseudônimo) em 1862 pelo crítico literário francês Charles Augustin Sainte-Beuve em um comentário ao livro Salammbô do Gustave Flaubert.
Nessa análise rápida, partimos de uma compreensão de que a palavra sadisme existia no léxico linguístico francês e teria o mesmo significado que apresentei ali atrás, sendo o jeito de pensar e agir como o Sade, tomando seus atos como uma filosofia enquanto seus seguidores, sadistas. Para entender um pouco melhor esse conceito, convido-os a refletir sobre a literatura de Karl Marx, onde o marxismo significa uma filosofia econômica, enquanto aquele que se identifica e segue essa filosofia seria um marxista, a relação aqui seria a mesma.
Essa palavra só foi para o inglês em 1886 pelo psiquiatra austríaco-alemão Krafft-Ebing. Memorize esse nome, pois ele será importante para entendermos muitas coisas.
Mas, quem foi o Marquês de Sade?
Falar de Sade não é uma tarefa fácil, pois demanda muitas análises. Seus trabalhos (sejam contos, novelas ou ensaios), se tratavam de profundas discussões políticas, pois tinham como foco desconstruir o Estado (através de sua posição e influência na burguesia) e questionar os valores religiosos (principalmente os cristãos). Então, não é sobre infligir dor e medo, muito pelo contrário.
Sabe-se que nasceu em Paris, em 2 de junho de 1740, e faleceu em 1814, sendo que em 1808 foi internado no hospício de Charenton, com o intuito de curá-lo da libertinagem (libertinage) e não tem nenhuma relação com o poeta brasileiro Manuel Bandeira.
Sim, isso mesmo que você leu. A palavra “libertinage” foi cunhada no século XIV por João Calvino (John Calvin), e para apontar os seus inimigos políticos ao movimento calvinista. Os libertinos representavam um grande movimento político europeu tendo apoio de muitos filósofos, sendo que muitos deles infelizmente foram sendo perseguidos não só pela Igreja, mas também pelo Estado (e acredite se quiser, nesse período, as duas instituições só fingiam não ser a mesma coisa).
A Libertinagem pregava, como filosofia de vida, uma reflexão que não seria o Estado ou a Religião que deveria se posicionar CONTRA os seus desejos, pois se você quisesse fazer algo e se amasse verdadeiramente, você deveria se libertar dessas amarras sociais e simplesmente fazer (sem se preocupar com o consentimento da outra pessoa) e ninguém deveria se opor ao que você desejasse fazer. Injustamente, a libertinagem era associada como o extremismo do hedonismo (uma vida focada unicamente nos prazeres sexuais), consequentemente, Sade não só entrou nesse movimento como seus discursos políticos ganharam fãs a tal ponto de criar uma corrente de pensamento e defensores, os Sadistas!
Para entender melhor essa questão, você precisa entender que o século XVIII foi marcado por três conceitos que se relacionam entre si: a beleza, a natureza e a verdade. Nessa relação, um se define ao encontro do outro, sendo assim, só deveria ser considerado belo se fosse natural, portanto verdadeiro. Aquilo que era considerado natural era verdade, logo também era belo e era considerado verdade o que era belo, portanto natural. Claro que apresentados assim, os três conceitos parecem sinônimos, mas cada um deles, porém, define um domínio distinto do pensamento, pois no universo da beleza se encontra a estética, enquanto na verdade, a lógica e na natureza, a ética.
Nesse paradigma está estruturada toda a obra de Sade, pois para ele, o império da natureza é inexorável podendo justificar tudo que pode ser chamado crime, justamente pela equivalência entre natureza, beleza e verdade. Em diversas passagens de suas obras, é comum, entre as personagens, surgir alguém fazendo discursos a favor da naturalização de seus comportamentos supostamente criminosos.
Na lógica sadística, “se a natureza confere ao homem maus instintos, crime seria não segui-los, uma vez que, por serem naturais, também são belos e verdadeiros.”
Além disso, Sade era burguês e seu tempo foi conhecido como a revolução burguesa, e seu discurso está comprometido com os valores de hierarquia social da qual participava, pois liderava um movimento filosófico através de suas obras, visto que essa era a mídia que conversava com as massas dessa época. Então, usava atributos sexuais e polêmicos para apresentar seus discursos. Por exemplo, o Presidente (a figura máxima de poder) tem pau pequeno enquanto as classes mais baixas são todos pirocudas em Os 120 dias de Sodoma, e a personagem principal em Justine ou os infortúnios da virtude sofre por fazer tudo correto enquanto outras pessoas sempre obtém êxito por cometer crimes e tudo o que seria moralmente repudiável.
É por isso que o sadismo teve tantos adeptos e compôs o movimento libertino, no entanto, Sade torturou pessoas simplesmente porque quis, alegando que seus desejos eram genuínos e, novamente, não poderia ser o Estado ou a Igreja a se opor a eles.
É exatamente por isso que Sade foi internado em um hospício de Charenton, pela forma de vida que levava e por suas ideias libertinas, que segundo alguns, poderiam corromper a alma de qualquer um! (frase dramáticamente cristã, não?)
A Libertinagem ganhara tamanha proporção que passou a ser crime na Europa em diversos países, como mencionei aqui na sentença do casal Aurousseau.
Perceba então que os Sadistas (defensores do Sadismo, uma filosofia de vida) não possuem nenhuma relação com a nossa compreensão popular do termo sádico, tão pouco se referem unicamente ao campo sexual. Mas por que isso aconteceu?
O masoquismo:
“A contar da presente data, o senhor Severin von Kusiemski passa a ser o noivo da senhora Wanda von Dunajew e renuncia a todos os seus direitos; ele, com, sua palavra de honra na condição de homem e fidalgo, doravante fica obrigado a ser dela o escravo enquanto ela própria não lhe conceder a liberdade.
Na condição de escravo da senhora Yon Dunajew, atenderá pelo nome de Gregor, satisfará a todos os seus desejos, obedecerá todas as suas ordens, se mostrará sempre completamente submisso à sua dona, considerando todo e qualquer sinal da benevolência desta tão-somente um ato excepcional de piedade.
A senhora Von Dunajew deverá punir seu escravo a seu bel-prazer, não só pelo que lhe pareça o menor descaso ou a menor falta, como também terá o direito de o maltratar, seja por capricho, seja por passatempo, como bem lhe convier, matá-lo até mesmo, se assim o preferir; em suma, terá sobre ele um direito de propriedade ilimitado.
Se a senhora Yon Dunajew vier a conceder a liberdade a seu escravo, o senhor Severin von Kusiemski se compromete a esquecer tudo o que experimentou ou suportou como escravo, e jamais, em tempo algum, sob nenhuma circunstância, cogitará vingança ou retaliação.
De sua parte, a senhora Von Dunajew compromete-se, na condição de dona de seu escravo, sempre que possível, a se apresentar com peles, especialmente quando tiver intenção de ser cruel para com ele.
Nestes termos encontram-se concordes na presente data.”
– Página 52 do livro A vênus das Peles
Esse é o modelo de contrato de escravidão consentida de Severin à sua deusa particular, Wanda. Para entender melhor um pouco dos personagens, Severin era leitor de Homero e Goethe, poeta e pintor, e entre outros sofrimentos, disposto a experimentar seus desejos sexuais que foram sutilmente expostos no decorrer do livro.
Qual o grande problema do Leopold Von Sacher-Masoch, que escreveu esse brilhante livro e retratou uma admiração idólatra de um casal, onde o amante se submete a sua esposa apaixonada, a ponto de ter seu nome associado tanto a Sade (sadomasoquismo) quanto para uma doença (masoquismo, propriamente dito)?
Sacher-Masoch viveu 59 anos, entre 1836 e 1895. Nasceu em Lemberg, cidade situada na região da Galícia – província ao sul da Polônia que em 1772 havia sido incorporada ao Império Austro-Húngaro (atual Lviv, na Ucrânia). Foi membro da aristocracia austríaca, ainda pequeno aprendeu o francês, língua em que foi alfabetizado, juntamente com o alemão, para estudar filosofia.
Masoch escreveu muitas novelas e pequenos contos (conhecidas como novelas galicianas) e por isso ficou famoso em sua região, e em 1869, Sacher-Masoch iniciou uma série de histórias sob o título “O Legado de Caim” que daria a ele a fama de ser um dos maiores escritores de sua época. O Legado de Caim tinha como objetivo lançar uma série de 8 livros que iria compor a trama central que seria uma analogia sobre a vida humana na Terra, começando com O Andarilho, tendo A Vênus das Peles como segundo capítulo dessa trajetória, mas a repercussão do livro lhe causou tanto desgosto que o fez abandonar o projeto.
Toda a história que se preze tem um vilão e neste caso, também será um Austríaco-Húngaro, o Richard von Krafft-Ebing! (eu falei para você memorizar esse nome, porque ele seria importante.)
Krafft e Masoch viveram na mesma região e se conheceram pessoalmente, mas viraram inimigos públicos após o ano de 1886 (dezessete anos após a publicação de A Vênus das Peles), quando Krafft torna público seu extensivo estudo Psychopathia Sexualis, o qual mencionei no artigo anterior.
“…acredito ser justificado chamar esta anomalia de “masoquismo”, porque o autor Sacher-Masoch frequentemente fez desta perversão, que até então era praticamente desconhecida ao mundo científico como tal, o substrato de seus escritos. (…) Mais recentemente, comprovou-se que Sacher-Masoch não era apenas o poeta do masoquismo, mas que ele mesmo sofria desta anomalia. Apesar destas provas terem sido comunicadas a mim sem restrição, vou abster-me de publicá-las. Refuto a acusação feita por alguns admiradores do autor e por alguns críticos do meu livro de que eu tenha “associado o nome de um autor respeitado a uma perversão do instinto sexual”. Como homem, Sacher-Masoch não perde nada na estima de seus contemporâneos ilustrados simplesmente por ser afligido com uma anomalia de seus sentimentos sexuais. Como um autor, ele sofreu um ferimento sério até onde a influência e mérito intrínseco de seu trabalho concerne, pois sempre que eliminou esta perversão de seus esforços literários ele se revelou um escritor talentoso, e como tal atingiu grandeza tão real quanto se tivesse agido com sentimentos sexuais normais. Neste respeito, ele é um exemplo notável da influência poderosa exercida pela vita sexualis no sentido de bem e mal sobre a formação e direção da mente humana.” – página 120 do Psychopathia Sexualis.
Acredite, Krafft, como psiquiatra estudava comportamentos sexuais não convencionais, mas, sem apresentar um ostensivo estudo sobre este em específico e se apegando a apenas UM ÚNICO livro, atribuiu o nome do Sacher-Masoch para um comportamento sexual, atribuindo-lhe como uma doença e criando uma marca em suas costas: Masoch seria agora, aos olhos do público, um doente. Quando Krafft foi questionado, preferiu não revelar nada (como mostra o trecho acima) e mesmo sendo comparado a todos os outros livros e contos publicados, visto que este é apenas a Vênus das Peles (com 80 páginas) e que faria parte de uma coletânea de 8 livros com questões completamente diferentes sendo abordadas em cada um deles), Krafft manteve-se firme em sua decisão alegando ciência.
Sim, há pessoas que possuem uma sexualidade relacionado a sentir dor, no entanto, o Severin não possuía essa vontade sexual de sentir dor, ele desejava servir sua esposa por amor a ela e, consequentemente, caso ela desejasse bater nele, seria bem-vindo. Percebe onde está o erro semântico?
E essa história ficará ainda pior…
O sadomasoquismo:
A palavra sadomasoquismo não existia até então, foi também criada por Krafft para apresentar o antagonismo ao masoquismo, visto que a palavra sadisme já existia na língua francesa, então, exatamente na página 183, Krafft-Ebing não só trouxe a palavra sadisme para o Alemão e depois para o inglês como também nos brinda com uma nova analogia, “sadismo e masoquismo (…) estão tão intimamente relacionados e correspondem tão bem em todos os pontos, que um permite, por analogia, a conclusão sobre o outro”.
Para ficar mais claro, se masoquismo se tratava de uma doença patológica no campo sexual que apresentaria o homem que gostasse de sofrer, e o sadismo seria a posição política de burlar leis, então, o sadomasoquista é exatamente a pessoa que possui uma patologia em infligir dor, então nessa conclusão seria, o sadomasoquista, o nosso atual “sádico” no senso comum moderno.
“O destino de Masoch é duplamente injusto (…) Sacher-Masoch, que inspirou a formulação do neologismo masoquismo, teve ao longo dos anos sua obra praticamente esquecida e associada com os escritos do Marquês de Sade. (…) O sadismo que seria mais do que o desejo de causar dor e o masoquismo, mais do que o desejo de sofrer” como brilhantemente coloca Deleuze no livro “o frio e o Cruel”.
Como já dito, sadismo se refere ao movimento político e aquilo que iremos chamar de ‘Masoquismo’ seria um ato/sentimento causado deliberadamente pelo amor do Severin por Wanda, no entanto, essa proximidade conceitual do Sadismo com o Masoquismo, acabou sendo consagrada, reafirmada e divulgada pela teoria freudiana (e toda a psicanálise), reforçando os estereótipos propostos por Krafft-Ebing, criando então o transtorno de personalidade sádica e o transtorno de personalidade masoquista, distanciando completamente do viés sexual.
“O sentido de ‘sadomasoquismo’, portanto, pode ser dado a partir da complexificação do vetor que diferencia ‘sadismo’ de ‘masoquismo’; seu significado compreende e engloba o das duas palavras combinadas em sua formação.
O dicionário, além dessa definição de sentido por meio da composição, coloca o conceito de ‘sadomasoquismo’ entre as perversões sexuais, tornando-o parte do mesmo conjunto em que são definidas a pedofilia, a necrofilia, etc., na determinação do que a linguística chama campo semântico – no caso, o campo das perversões sexuais.” – Diz Antonio Vicente Seraphim Pietroforte em “M(ai)S Antologia Sadomasoquista da literatura brasileira”;
Quase que complementarmente ao longo do século XX, os dois nomes foram sendo associados a doenças no campo da sexualidade e transtornos mentais, então, o “Sadismo & Masoquismo” (S&M) ou “Sadomasoquismo” (SM) passou a ser usado como insulto aos praticantes da nossa comunidade até que ficou popularmente conhecido como tal.
A partir dos anos 50 e tendo o auge nos anos 80, o crescimento da comunidade Sadomasoquista estadunidense (ou SM) se preocupou em desassociar os termos médico-patológicos das práticas, sendo assim, o termo “sadism” foi facilmente substituído para “TOP” e todas as suas considerações, assim como “masochism” para “BOTTOM” e, além disso, a comunidade se esforçou, para que, em nenhuma hipótese, suas práticas fossem associadas a doenças ou transtornos.
Veja que ser homossexual já passava pelo mesmo estigma-social, então, a luta pela quebra do “homossexualismo” como patologia estava ganhando cada vez mais força, mas dentro da própria comunidade LGBT, os gays e lésbicas eram vistos como diferentes e “doentes” exatamente por suas práticas, eis que surge uma minoria ao longo dos anos 70 que promove uma mudança de nomenclatura para toda a comunidade, passando a se auto-entitular como praticantes do Erotic Power Exchange (troca de poder erótico).
“Erotic power exchange é o termo gentil e politicamente correto para dizer ‘SM’, ou sadomasoquismo.” – Página 355 do livro SM101 – A Realistic Introduction do Jay Wiseman:
O Darren Langdridge e Trevor Butt estudaram exatamente as pessoas que defenderam a mudança do termo SM para EPE e publicaram-no em 2008 com o título The erotic construction of power exchange.
“Seguindo Kelly (1955) e Merleau-Ponty (1962), Butt e Hearn (1998) argumentaram que a troca de poder é uma característica do mundo que prontamente oferece um significado sexual.
(…)
O tema discursivo relacionado à troca de poder erótico (EPE) serve para construir uma identidade sexual distanciada do discurso médico-patológico percebido do sadomasoquismo, mas não de identidades sadomasoquistas mais amplas
(…)
Podemos perceber uma tentativa explícita de membros dessa comunidade de se distanciarem do discurso comum S&M, a fim de evitar o que é percebido como estereótipo incorreto e rótulos confusos para suas práticas sexuais. No entanto, S&M e BDSM permanecem com os rótulos dominantes para identidades e práticas sexuais que explicitamente envolvem poder e dor e EPE representa uma voz minoritária. É uma minoria crescente, entretanto, e representa uma tentativa de trazer um termo guarda-chuva para a vasta gama de jogos de poder sadomasoquistas que podem subjugar todas as identidades anteriores. A EPE foi claramente prefigurada pela mudança de S&M para BDSM e D/s. BDSM (Bondage, Domination, Submission, Masochism) e D/s (Dominance / submissão) são tentativas de reconhecer a pluralidade de práticas que constituem o jogo sadomasoquista.
(…)
A definição deles é que SM está obtendo prazer de uma troca de poder e/ou dor em um jogo de sexo consensual ou fantasia sexual e que, como sexo SM é, por definição, sexo consensual e o não consensual é um abuso de poder e, portanto, violência sexual. Jamais, em hipótese alguma será sexo SM. Eles afirmaram que não há papéis pré-determinados no sexo SM. As relações de poder são definidas pela escolha e, portanto, o objeto do SM é o prazer mútuo, não a violência ou a crueldade.
(…)
Ainda não se sabe se a nova voz focada na troca de poder proporcionará o afastamento da violência sexual (possivelmente) necessário para uma aceitação mais ampla. Se Langdridge e Butt (2004) estão corretos ao dizer que as identidades sexuais sadomasoquistas são muito sexuais e muito transgressivas para o reconhecimento da reivindicação de cidadania, então podemos apenas esperar uma transformação linguística de sadomasoquismo para troca de poder erótico para transformar a possibilidade de reconhecimento.
(…)
Uma qualidade fundamental da troca de poder erótico em toda prática sadomasoquista é a maneira dinâmica como o poder pode ser empregado. Os praticantes usam o poder de forma criativa em seus relacionamentos para realizar uma ampla variedade de objetivos sexuais e emocionais. Os membros das comunidades EPE estão altamente conscientes de que a negociação é a chave para demarcar o jogo erótico consensual do abuso. O papel da contratação explícita no jogo de poder é crucial e reconhecido como tal nessas comunidades.
(…)
Do ponto de vista de um estranho, a família de práticas sadomasoquistas parece estar focada em infligir dor. Mas, da perspectiva dos participantes, é claro, tais práticas tratam de muitas coisas diferentes: para alguns, trata-se de brincar com o domínio e a submissão, para outros, a restrição da liberdade através da escravidão, e ainda para outros o significado da dor. O importante é o significado que essas práticas têm para os próprios praticantes. Todos os aspectos da situação precisam ser exatamente especificados, negociados e enquadrados em uma relação de consentimento para que sejam contados como EPE. A noção de jogo é enfatizada tanto pelos participantes quanto pelos observadores. Os participantes magnificam e ironizam a maneira como o poder infunde as relações sexuais nas relações cotidianas de gênero. De fato, foi sugerido que é essa a característica do sadomasoquismo que o confere tal desonra e desgraça social. Os participantes do EPE vêm de dentro do mundo S&M, mas representam um movimento dentro da comunidade para a troca de poder de primeiro plano sobre outros aspectos do jogo sexual sadomasoquista. Vemos aqui a pluralidade de vozes. Não existe uma cultura S&M homogênea, mas uma heterogeneidade que se torna cada vez mais aparente à medida que as histórias sexuais se elaboram e proliferam no mundo moderno tardio e é aqui que se evidencia um entrelaçamento de construção pessoal e social. Os indivíduos buscam e elaboram seus significados pessoais da vida erótica.”
A conclusão:
Krafft-Ebing estava identificando pessoas com uma sexualidade de submissão ou uma sexualidade correspondente a sentir-se açoitado? Não fica claro, ele apenas associa tudo o que o Masoch colocou na obra como doença, podendo ser atribuído tanto pela submissão quanto pela necessidade de sentir dor para alcançar o que compreendemos hoje como um orgasmo.
Não posso deixar de ressaltar o problema semi-inconsciente do machismo, visto que haviam inúmeras histórias européias e mitológicas de seres que se submetiam aos outros e se satisfaziam com isso, ou que alcançavam o orgasmo através da dor, mas, a partir do momento que um homem da alta sociedade austríaca faz sucesso ao representar um homem igualmente interessante que se submete a uma mulher poderosa, isso com certeza só poderá ser uma doença, certo? (contém sarcasmo!)
Tão pouco podemos dizer que o termo ‘sadismo’ ou ‘sádico’ nos representa como comunidade ou praticantes, visto que nós fazemos parte de um movimento e respeitamos nossas próprias regras e limites (safeword e acordos pré e pós sessão), portanto, o que seria um sádico dentro do universo BDSM? Ele estaria representando um movimento político-social e reforçando o movimento de contracultura sexual ou está dizendo, indiretamente, que seu prazer está em infligir dor e no comportamento predatório associado ao senso comum do termo sadismo (sendo agressivo e desrespeitoso com seus amigos e familiares)?
Por fim, não menos importante, como descrevi aqui, a Wilma Azevedo declarou que viajou para os Estados Unidos algumas vezes ao longo dos anos 80 e, ao trazer para o Brasil a diferença entre Sadomasoquismo Patológico e Sadomasoquismo Erótico (como elabora e reforça no livro ‘SM sem Medo‘ de 1998), eu vejo que não me parece uma ideia totalmente original da Wilma e tão pouco distante do movimento EPE presente na mesma década nos bares fetichistas estadunidenses e confesso que, ao confirmar que a Wilma reforçou sua admiração e respeito pelo Sacher-Masoch ao longo do livro ‘A Vênus de Cetim‘, acredito que ela não ousou resignificar o termo “masoquismo” para ‘troca de poder’, pois lhe faltou a mesma coragem dos praticantes do lado de cima da América em desassociar o nome dos filósofos e contrariar o senso comum.
Seria muito doloroso para um fã sumir com o nome de seu ídolo, não? Mesmo que isso significasse algo extremamente nocivo para a compreensão e aceitação social da própria comunidade que estivera formando.
Sendo assim, atualmente seria bem improvável que venhamos a desassociar os nomes de Sade e Masoch das sexualidades sádica e masoquista, mas é importante que tenhamos em mente a história por trás dessas nomenclaturas e, principalmente, entender a evolução do seu significado até a concepção que temos hoje dentro da contracultura do BDSM.
AUTOR
Mestre Sadic
Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.
Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P
Site: https://mestresadic.com.br
Instagram: https://www.instagram.com/mestre_sadic
Fetlife: https://fetlife.com/users/5909606
Medium: https://medium.com/@mestre_sadic
NO BDSM TEMOS FETICHES OU UMA SEXUALIDADE?
JUIZ SM: O CASAL AUROUSSEAU E O MELHOR FILME SOBRE BDSM
BDSM: CULTURA, SUBCULTURA OU CONTRACULTURA?
HISTOIRE D’O: A ESTÓRIA MAIS IMPORTANTE DA HISTÓRIA
APRENDENDO BDSM E FETICHES COM O MESTRE SADIC
Respostas de 2
O Sadismo e masoquismo na teoria freudiana está ligado diretamente a sexualidade… Vide livro “SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 6 TRÊS ENSAIOS SOBRE A TEORIA DA SEXUALIDADE, ANÁLISE FRAGMENTÁRIA DE UMA HISTERIA (“O CASO DORA”) E OUTROS TEXTOS (1901-1905) TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA”
I go to see every day a few web pages and websites to read articles, however this web site gives quality based articles. Dyan El Benton