Primeiro Ato: A Importância da Máscara Lúdica
O termo persona significa “máscara” e trata-se de uma palavra antiga utilizada pelos etruscos e da qual depois os romanos se apropriaram. Os termos personagem e pessoa derivam da palavra persona e vão nos ajudar aqui a entender a importância dessa “máscara” na constituição dos jogos BDSM.
O médico psiquiatra Carl Gustav Jung, através de sua psicologia analítica, desenvolveu o conceito de arquétipo de persona, onde ele acredita que devido à necessidade de socialização, os indivíduos para se adaptarem aos diferentes meios em que convivem, utilizam-se de máscaras sociais em suas relações, servindo tanto para deixar a impressão que se deseja que o outro tenha de nós, quanto para ocultar a nossa verdadeira natureza.
Para facilitar a compreensão, tomemos um exemplo bastante simplório: no meu dia a dia, utilizo uma linguagem bastante informal, faço uso de gírias, falo ‘palavrões’, mas quando entro no ambiente corporativo, eu ativo, inconscientemente, a minha persona profissional e isso já está naturalizado para mim e não preciso fazer nenhum esforço para que a minha fala seja mais polida, que os palavrões não venham à tona, e minha postura fique mais séria e centrada. O meu inconsciente entende que naquele ambiente é necessário que eu utilize essa máscara para me relacionar com as pessoas daquele meio de forma que elas aceitem a mim e as minhas ideias e que possamos conviver em harmonia.
Isso não quer dizer que eu esteja agindo de forma falsa, fingindo ser algo que não sou, porque essa ainda sou eu, essa é mais uma parte de mim. Muitas outras personas me constituem e todas me representam.
Mas por que é tão necessário entender esse conceito quando falamos em uma expressão sexual fetichista e com dinâmicas BDSM? Calma que esse assunto é um dos mais importantes e precisa ser bem explicadinho!
Antes, porém, preciso apresentar a você, queride leitor, o conceito de “role play”. Trata-se em português de uma encenação, de uma interpretação de papéis. Quando montamos dinâmicas no BDSM estamos sempre performando e encenando como se fosse em uma peça de teatro. Seu fetiche é que o dominador esteja fardado e represente um policial que vai te aplicar as penalidades da lei? Ou sua fantasia é representar uma aluna safadinha que precisa ser disciplinada pelo seu professor? Ou ainda você quer ser o doguinho que faz bagunça em casa e fica ansioso esperando a mamãe chegar? Bom, todos esses são bons exemplos de “role play” ou encenações que são combinadas previamente para serem vivenciadas nesse palco lúdico que é o BDSM. Dessa forma, cada um desses personagens é uma representação da expressão da sua persona sexual. É através de uma dessas máscaras que você encontra o seu prazer.
Aí, você pode estar pensando assim: “ah, mas eu não curto nada disso, eu não preciso interpretar um personagem, eu só entro no jogo com minha roupinha mesmo e me entrego ao dominador para ser submetida, subjugada…” Hmmm… Mas pense comigo, quando você está sendo humilhada, chamada de vadia ou de cadela, isso te representa no seu dia a dia? Quando você sente prazer em palmadas, chicotadas, surras, você também gosta que isso seja realizado ou praticado em você em qualquer momento e por qualquer pessoa no seu cotidiano? O prazer que você retira da dor provocada por uma tortura com cordas de shibari (semenawa) é o mesmo que você sente durante uma cólica menstrual?
Eu tenho um bom pressentimento de que a sua resposta foi “não” para as minhas perguntas e o que eu quero dizer é que mesmo que você não esteja interpretando um cachorrinho, uma figura de poder, um personagem da ficção, você está também performando e interpretando um papel, pois você só é uma vadia e uma cadela naquele contexto consentido e acordado, fora dele você não é um depósito de porra ou um penico humano e deve ser respeitada como o ser humano que é.
Segundo Ato: Composição da Persona
Algumas pessoas literalmente constroem suas personas a partir de uma consciência prévia daquilo que caracteriza seus gostos e preferências. Não posso dizer que o mesmo aconteceu comigo, mas esse é um papo para o próximo texto.
Talvez o primeiro elemento da sua persona que você vai mostrar ao mundo (ou ao SubMundo) seja o seu nick, aquele nome/apelido pelo qual você deseja ser chamado e conhecido pela comunidade kink.
Nomear a si mesmo é o primeiro ato para dar vida e materializar a sua persona sexual fetichista BDSMer. Esse momento é, para muitos, bastante simbólico, pois é o momento em que verdadeiramente se toma posse dos próprios desejos. Quando nascemos, não escolhemos como seremos nominados pelos outros, mas quando damos vida à nossa persona sexual, o fazemos conscientes de quem somos e do que queremos.
Chamo atenção aqui, no entanto, para que não se confunda o nick, que é a sua identificação pessoal, com honoríficos como: Senhor, Senhora, senhorita, senhorito, sub, escrava, escravo, Dom, Domme, Lord, Mestre, Misstress, Rainha, Goddess, Master, entre outros.
Nome escolhido, você agora vai querer apresentá-lo ao SubMundo, certo? Então, é hora de criar seus perfis nas redes sociais com seu nick e seu honorífico de preferência. Há quem diga que existe alguma regra por trás do uso dos honoríficos, que há diferenças entre submissa e escrava, que um dominador não pode se autodenominar Mestre e não estou aqui para ditar a forma como você deve entender e lidar com essas nomenclaturas.
Aqui no SubMundo não acreditamos em um “plano de carreira BDSM”, mas preferimos prezar pela forma mais libertadora de viver a sexualidade e não pretendemos enquadrar seu prazer em nenhuma caixinha. Portanto, se para você que se entende como submissa, te dá prazer pensar que você está em um patamar e que depois vai evoluir para chegar à condição de escrava, está tudo bem você pensar assim, desde que você não diminua outras pessoas com algo que dá prazer para você. Da mesma forma, se um dominador tem a sua expressão dominadora inflada sendo chamado de Master, ele não precisa ter sido um Senhor, para depois ser um Dom e chegar a Master. Você entende que isso não muda nada para as pessoas ao seu redor e isso só diz respeito a você? Então, tome posse do seu prazer conforme lhe convier.
Uma grande parte da sua interação no meio fetichista vai acontecer por via digital e aqui não me refiro a realizar práticas virtuais, mas você vai fazer amizade, conhecer pessoas, participar de eventos muitas vezes de forma online, então seu perfil na rede social e como você se comporta nele vão expressar também quem é essa persona. Se uma pessoa é mais voyer, provavelmente vai ser mais observador e não vai postar tanta coisa, já a pessoa mais exibicionista pode usar esse espaço para se mostrar e por aí vai. Então, permita-se expressar através das suas mídias aquilo que você deseja comunicar sobre a persona que você está apresentando ao SubMundo. Só tome cuidado com o tipo de conteúdo que pode ser exibido em cada rede para não ter suas contas banidas por violar regras de algum site ou aplicativo.
Grand Finale: Como Colocar e Retirar a Máscara
Agora que você já entendeu o que é a persona sexual no jogo lúdico do BDSM e já a apresentou à comunidade, fez amigos e encontrou parceires com quem você tem interesse em jogar, talvez você ainda se pergunte como efetivamente se coloca e se retira essa tal máscara lúdica.
Como bem sabemos, não é tão naturalizado entrar no “Palco BDSM” quanto entrar em uma empresa para um dia de trabalho. Durante nossas vidas, fomos sendo ensinados a como nos portar em determinados tipos de ambientes, conhecemos bem alguns protocolos de comportamento que são socialmente esperados de nós e, assim, algumas situações são intuitivas e estão internalizadas pelos nossos padrões socioculturais. Mas muito provavelmente ninguém o ensinou sobre o BDSM e você não sabe como colocar essa máscara invisível de que eu tanto falo aqui. Vou tentar te ajudar um cadinho com essa parte! Primeiro, sempre que você for iniciar uma sessão, tenha acordado com o seu dominador algum sinal, algum gesto, uma posição, uma palavra ou qualquer coisa que indique “a partir daqui abriu-se as cortinas e a peça de teatro começou”. Isso vai indicar para você que dali em diante tudo que for dito e feito só vale enquanto vocês estiverem com essa máscara invisível. Da mesma forma, sugiro que algo seja combinado para que o dominador sinalize que a sessão terminou e que é hora de retirar as máscaras para dar início ao aftercare.
Até aqui eu acredito que esteja tudo bem, você já sabe o momento em que você deve colocar a máscara, mas como encaixar essa máscara em você? Essa aqui é uma parte da história que é muito pessoal e faz parte da sua descoberta individual que é o “ponto de virada da chavinha” como eu gosto de dizer. Quando meu dominador me sinaliza que a sessão vai começar, eu respiro (quando dá tempo heheh) e começo a internalizar essa informação. Temos alguns rituais, que são pequenos gestos, nada muito elaborado e, como você já deve ter lido em algum texto meu, é com uma respiração quente em meu pescoço o meu ponto de virada, ali deixo a submissa aflorar e minha máscara encaixa para que eu vivencie a play.
De início talvez você ainda não reconheça esse ponto de virada com um novo parceire, mas foque em fazer boas negociações para que seus acordos contemplem apenas coisas que te tragam prazer e que você se sinta confortável em praticar e você logo vai descobrir o que funciona para você vestir sua máscara, entrar no flow e colocar em prática a sua persona sexual. Para alguns pode ser que seja necessário criar um clima visual seja com indumentárias, seja com iluminação, para outros uma venda nos olhos para se desligar do mundo real seja mais apropriado, há ainda quem precise de algum estímulo auditivo, enfim são inúmeras as possibilidades e você vai encontrar o seu modo próprio de entrar em seu personagem, vestir sua máscara e entrar em cena.
Já para retirar a máscara fazemos uso do aftercare (que eu expliquei com mais detalhes nesse texto aqui), que é o momento após as práticas que vai incluir um conjunto de ações e cuidados que são necessários para que os praticantes saiam daquele estado de excitação causado pela dinâmica, para abandonar aquele palco lúdico e voltarem para o ambiente real.
Se tudo correu bem, mesmo com algum imprevisto ou outro (porque teatro é ao vivo 😉 e até o ator mais experiente pode se atrapalhar), uma vez que as cortinas se fecharem, você vai ter expressado a sua sexualidade em um espaço construído ludicamente para isso e a chance de você pedir bis é enorme!
Com carinho,
Bela.
AUTORA
Quem nos conduz nessa jornada pelo SubMundo é Belarina.
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Respostas de 2
Não tenho nenhuma vivência 24/7 (como foi tema de um texto recente aqui no site), acredito que neste contexto pode não ocorrer a incorporação de um personagem. Mas nas outras práticas BDSM é fundamental.
Eu não gosto de apanhar e ser restrito e amordaçado no dia a dia, mas o morroi, minha persona, ama! Aliás, morroi significa servo em basco e foi um nick que adotei quando comecei a me interessar pelo BDSM. E é ele quem escreve aqui sempre, rsrs.
Olha, que legal conhecer o significado do seu nick, morroi! E obrigada por sempre passar por aqui pra deixar seu feedback! 🥰