O PESO DO CHICOTE DO PASSADO

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Pedindo licença mais uma vez para sair dos cronogramas traçados previamente. Afinal, a vida é repleta de suas imprevisibilidades e, as vezes, de uma conversa com pessoas queridas, podem sair sugestões de temas que merecem também nossa reflexão.

Tive uma conversa com a Sub de Alma do Cão (se você ainda não segue, vale a pena. Todos os dias a Brat de Alma do Tinhoso que habita esse ser que vos escreve se identifica com um post por lá!) que tinha muito a ver com questões minhas pessoais (da vida de Pessoa Física, fora do Hacking Sex, do BDSM, enfim), e tivemos uma conversa bem legal sobre o assunto.

Como era algo que me tocava e a ela também, prometi a ela que escreveria sobre. Talvez seja mais confessional e, novamente, com mais questões do que respostas. Afinal, como disse, é algo que me afeta profundamente e que até hoje isso é processo (ou seja, não está findado). Na verdade, como tudo que gosto de discutir, aquilo que é reflexivo é transitório e não há problema em mudarmos perspectivas ao longo do tempo (na verdade, estranho seria se nunca mudássemos nossas questões e visões de mundo, não é mesmo?).

Como estamos em um espaço voltado para o BDSM, pretendo trazer as discussões voltadas para essa área. Mas claro que não foca só nisso. Você pode pegar e estender isso para sua vida de modo geral.

Bom, vamos a reflexão da quinzena? Pegue um café e convido você a entrar na toca e nas discussões dessa semana. Vamos juntos?

Os dois polos desta discussão

Bom, apesar de sempre buscar evitar discussões binárias (porque o mundo e as situações não são só polos positivos/negativos, bem/mal, mas sim uma série de matizes e gradações), decidimos dividir essa discussão em duas questões: sobre admitirmos o modelo de “um” relacionamento como o “único” relacionamento; e num segundo momento também sobre repetições de padrões.

É uma separação didática, só para não ficar muito confuso! No fundo, estamos sempre transitando entre a necessidade de entender como as vezes podemos repetir padrões e, também, em como passamos a acessar determinados modelos como se eles fossem o único possível (pelo lado positivo e negativo).

Um modelo não é O modelo

A discussão com a Sub de Alma do Cão começou, justamente, por meio de um story que ela compartilhou que me tocou num ponto muito preciso. O texto dizia: “sim, relacionamentos tóxicos são difíceis, mas sabe o que mais é difícil? Seu primeiro relacionamento saudável depois de um tóxico. Ninguém fala sobre como é difícil desaprender todos os comportamentos tóxicos que você adaptou como mecanismos de defesa”.

Lembro-me a primeira vez que eu entre no modo full-defense em uma discussão, razoavelmente pouco tempo depois que saí de um relacionamento baunilha no qual eu não tinha espaço para expor o que me incomodava (no qual as minhas questões eram sempre invalidadas ou vinha o gaslighting ou, ainda, o famoso “abuso por ausência”, no qual as vezes ficava uma semana sem qualquer contato e toda tentativa de retomar de onde parava voltava para esse cenário). No fundo, não foi bem uma discussão, porque a situação foi: eu entrei em modo totalmente defensivo para expressar o que estava me incomodando, esperando a devolutiva no mesmo padrão (o único) que eu conhecia.

A resposta que eu tive foi uma escuta ativa, consideração, um pedido de desculpas e uma devolutiva respeitosa – que me fez ter um bug mental pensando “mas então quer dizer que pode ser fácil assim demonstrar incômodo?”.

Pra mim, aquele primeiro modelo que eu tive era O modelo. E, portanto, eu tinha que entrar em modo defensivo sempre que algo me incomodasse, pra que eu pudesse ser ouvida e respeitada. O choque me deslocou demais. Era possível ter, então, padrões diferentes. Saudáveis.

Mas para além disso, é muito comum que pessoas que passaram por relacionamentos traumáticos – e isso inclui os no BDSM – façam sempre o movimento de comparação entre a relação atual e aquela que foi ruim. É protetivo, não é mesmo? Faz sentido. Ficamos buscando pontos de semelhança e qualquer coisa que nos noticie daquele evento passado nos faz recuar, como se fatalmente, os resultados fossem ser idênticos.

Ou, então, nos protegemos de relações de qualquer natureza que se assemelhem àquela. Porque associamos que o contexto foi o que nos deixou vulnerável. No baunilha, por exemplo, é muito comum acreditar que “o amor me cegou para os abusos, então não vou me envolver em relações românticas mais”. No BDSM, pode ser um certo fatalismo de que toda Ds envolve dinâmicas que sempre vão terminar em abusos e pessoas feridas.

Muitas vezes a pessoa que vem depois do trauma recebe a carga de todos os traumas anteriores (e, muitas vezes, sem saber). Esse é um ponto que tenho pensado muito, até mesmo, sobre como as vezes projetamos esses modelos sobre o outro. Diversas vezes me surpreendo com isso em algumas questões pessoais. Ou, então, me pego não estando em situações presentes, porque é uma questão de “quando” aquilo “vai dar ruim” – tá vendo onde minha mente está? No futuro, e não no presente, aqui, experienciando algo bacana.

“Mas e se eu estou me enganando aqui?”, e sabe o que acontece, muitas vezes, com isso? Eu estou distante no momento agora, o que eventualmente pode causar, justamente, a casca dura que vai fazer “dar ruim” no futuro. Ou os padrões protetivos tornam-se tão fortes que entrar na minha vida torna-se uma “prova de resistência”: porque como eu sei que vai dar ruim, é melhor nem deixar entrar. E isso promove uma sensação horrível para mim e para quem me relaciono, com certeza.

Relações não são modelos lógico-matemáticos

Aqui eu digo como total leiga e de forma anedótica sobre o assunto. Nossos colegas formados em psicologia aqui poderão trazer uma visão melhor fundamentada sobre o assunto. Mas digo por mim e por pessoas queridas próximas: a união de um trauma em um dos primeiros modelos relacionais com uma insegurança, muitas vezes, nos joga no lugar de fazermos cálculos matemáticos sobre as situações: A+B = C sempre.

É claro que esse é um modelo protetivo e faz sentido num primeiro momento, afinal, não queremos nos expor a situações que nos doeram (e não da forma masoquista gostosa). E isso é um ponto importante até mesmo para evitar repetições de padrões (ou, pelo menos, para identificá-los).

Contudo, podemos cair em um outro lugar: tornar essa análise um cálculo matemático e sempre recorrermos a este primeiro modelo. E se A + B = C, se A está presente, então logo, vai resultar em C.

E ainda podemos cair em um lugar delicado: admitir que o modelo relacional traumático que passamos é “O” modelo. E que não há outras possibilidades possíveis. Esse, inclusive, é um argumento muito comum de pessoas que passaram por algum tipo de trauma, abuso ou violência que estão no meu círculo de amizades (foi o meu, inclusive, por muitos anos).

Ou, ainda, podemos ter a versão oposta! Sim, tivemos uma relação tão boa, que nos impactou tão positivamente, que adotamos aquele como o nosso modelo de afeto relacional, e nos reportamos a ele todo o tempo. E aí ficamos sempre acessando esse modelo e tudo que sai disso ou não funciona, ou nos frustramos.

Vamos começar com um exemplo baunilha, pois ele é de mais fácil acesso. Pense em um namoro que, apesar do fim, você foi extremamente feliz e admite que um relacionamento saudável precisa ter os requisitos que fizeram parte daquele momento. Por exemplo, quando a pessoa do seu “O modelo” tenha facilidade para expressar carinho de forma física (cafuné, massagem e afins). Quando a sua próxima relação oferece outra forma de expressão de afeto (por exemplo, focada em cozinhar para você, ouvir suas demandas, entre outros), mas não tem essa parte do afeto físico, se você admite que esse é “O modelo”, mesmo que não de forma consciente, você vai pensar “hmm, esse relacionamento não é bom, a pessoa não gosta de mim, ou ela seria carinhosa”, ou sempre fica aquela ausência.

O mesmo vale para as Ds. Cada pessoa vai ter as suas diferenças. Dois dominadores, por exemplo, poderão lidar com a relação de formas diferentes e continuar sendo saudável da mesma forma. E promover experiências totalmente diferentes e gostosas também.

Resumidamente: afetos e relações são diferentes entre si. Assumir que todas as relações de determinada natureza são as mesmas (amizades, partners, tops, bottons, parcerias afetivas, entre outros) causa muito sofrimento. Porque não adianta tentar equacionar, não é bem assim que funciona. Essa tentativa do controle para poupar sofrimento ou garantir sucesso não funciona bem para as relações afetivas. As vezes, nossas proteções são importantes sim para nossa vida (mais uma vez, não é um ode a não notar sinais red flag, jamais seria capaz de dizer tamanha atrocidade!), mas elas não podem nos proteger, até mesmo, de nós e da nossa felicidade.

Obviamente, vou fazer uma ponderação: observar esses modelos não significa abrir mão de estarmos sempre alertas para não repetir padrões de comportamento. Claro que temos sinais claros de alerta e que devem ser ouvidos sim. Mas esse é o papo do próximo texto.

É fácil desligar-se deste modelo? Olha meus queridos, não é não, viu. Primeiro lugar: entender que relações não são modelos matemáticos já é difícil por si. Segundo: assimilar que nós fazemos isso, muitas vezes, demanda tempo, atenção e olhar para si. E isso é doloroso, difícil e é um aprendizado diário.

Então aqui não é um “pare de fazer isso hoje mesmo!”, porque cada história possui seus matizes, cada pessoa possui sua forma de lidar com as situações. Então aqui são reflexões em processo de quem está no processo de entender como isso acontece.

Vale lembrar que tudo isso que está aqui é fruto de quase meia década de terapia. E muitas das coisas aqui eu só estou me tocando agora. Talvez daqui a outros 5 anos eu possa mudar a visão sobre tudo isso. Afinal, é processo. É devir. Mas a terapia foi quem me deu a mão pra “sair dessa toca” e ver essas coisas (inclusive essas sombras) por uma outra perspectiva.

E você, já passou por este tipo de situação no BDSM? Ou como isso afeta suas relações, após um trauma no meio? Se você se sentir confortável, compartilha aí nos comentários.

AUTORA

HACKING SEX

Nascido de uma ideia de mudar o sistema por dentro, aproveitando as brechas de vulnerabilidade para repensarmos e fortalecermos as concepções sobre (a)sexualidade(s), em constante (des)(re)construção, feito de forma coletiva. Construindo uma comunidade com o fortalecimento de todos os membros, abrindo espaços para trocas colaborativas de ideias, para que todos possamos crescer juntos no processo.

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