MERGULHO EM MAR REVOLTO: RED FLAGS, SUBTROP E MEU INÍCIO NO BDSM

Partindo da nossa premissa de ser um espaço de trocas para acolher aqueles que estão adentrando o universo do BDSM, a partir da identificação com as experiências aqui compartilhadas, hoje o SubMundo traz a Hacking Sex para dividir conosco os seus primeiros passos nessa jornada dos prazeres.

Com a palavra Hacking Sex…

“Quando fui convidada para trazer meu relato aqui no SubMundo, eu pensei em tantas abordagens: ser direta? Contar os relatos literais e deixar a reflexão para cada leitor? Ser visceral, até nos detalhes que poderiam ser gatilhos? Nada disso me soava bem.

E enquanto escrevia, fui rememorando todos os processos terapêuticos que vivenciei nessa trajetória. E tem uma metáfora muito bonita e significativa (pelo menos para mim) sobre estar diante do mar. Quando lembrei dela, tudo relacionado com as minhas experiências no BDSM se encaixaram nisso.

Portanto, trago aqui para vocês, talvez menos direto e literal do que muitos gostariam, mas acho que é um caminho melhor para entender não só as delícias, mas os riscos e consequências de tudo que vivenciei até aqui. Espero que gostem.

Uma introdução necessária:

A primeira vez que eu vi o tão famoso acrônimo era 2004. Eu tinha menos idade do que deveria para lidar com aquilo. E numa época em que conteúdos em língua portuguesa eram escassos, repletos de romantizações sobre o tema, o risco de uma cilada era enorme. Isso dá uma boa visão sobre tudo que aconteceu daqui em diante.

A idealização do mar

Você lembra-se da primeira vez que viu o mar? Eu não me lembro da primeira vez em si, pois devia ter ali pelos 4 anos e as memórias me são muito escassas. A segunda aconteceu quando eu tinha 13 anos, e parecia como se nunca tivesse pisado na praia antes.

Como era o cheiro de maresia? Qual era o som hipnótico do mar? Qual seria o gosto da água salgada? Era como eu ficava me perguntando. Num paralelo, era como me sentia ao imaginar o que era uma sessão BDSM, enquanto ainda estava em um relacionamento baunilha desde o final da minha adolescência. Como disse aqui na introdução, eu tive todo um caminho torto sobre o BDSM: descobri de forma precoce demais, com fontes erradas demais, mas essa “fome” por uma experiência parecia me engolir ao longo daqueles 10 anos que estava com meu então parceiro.

Ele era super compreensivo e até, com um bom esforço, tentava trazer aquilo que meu corpo tanto ansiava. Mas ambos sabíamos, lá no fundo, que nas dinâmicas de poder, ambos estávamos do mesmo lado da força. Mas estando ciente e querendo continuar, apenas deixei para lá. Adormeci aquele lado kink que habitava em mim (admitindo que aquilo ficaria apenas no campo fantasioso, por escolha. E estava bem quanto a isso).

É uma escolha que não me arrependo. É claro que eu queria conhecer o mar. Era fascinação. Desejo. Mas estava bem com as águas doces de um rio tranquilo. Escolhas. Sempre estamos fazendo elas na vida. E estarmos bem com aquelas que fizemos é algo importante. Mas, é claro, todas as minhas fantasias eram voltadas para mergulhar naquele mar encantador que eu queria conhecer.

O primeiro capote

Eis que, 10 anos depois, me descobri solteira. Como quem namorou por toda a adolescência e os vinte e poucos, tudo parece muito novo. É como voltar aos 15 anos, mas você não pode (e não deve) agir como se a sua maturidade fosse a dessa idade. A inexperiência pesou. E o anseio de querer viver tudo que não vivi em fases de descoberta rouba muito da nossa racionalidade.

Momentos de luto, como rompimentos de relações, nos jogam para uma posição muito vulnerável. Se eu aconselhasse as pessoas de acordo com a minha experiência, eu diria: vá viver a vida, mas cuidado com o BDSM enquanto ainda não estiver recuperado(a) e seguro(a) de si. O risco é desastroso.

Eu nunca parei de estudar sobre BDSM, fetiche e afins nos 10 anos que estava em relacionamento. Logo, não havia um gap de conhecimento. Era 2017, tudo estava muito mais acessível do que as primeiras vezes que li sobre BDSM. Aquela aura romântica havia saído da maioria dos textos que lia nos últimos anos. Havia se tornado mais racional. Mais real. Mais palpável, mais educativo.

Por isso, eu achei que estava preparada naquele momento para dar o primeiro passo para o litoral. Porém, lembre-se: a vulnerabilidade, bicho, é um problema. Coloque uma pessoa com ânsia de viver tudo que deseja de uma vez só, diante do mar, e você verá como todas aquelas lições racionais que estavam ali, todas presentes na cabeça, podem ir por água abaixo por mero deslumbramento. Isso joga o Divertidamente da razão lá para o fundo da cabeça e o amordaça com uma gag.

Como uma boa mineira, estar diante do mar pela primeira vez dava aquele frio gostoso na barriga. Tudo é novo. Tudo é bonito. Mas você nunca entrou no mar. Não sabe como bate a primeira onda. Não sabe qual a sensação. E tudo que você quer é, naquela agitação que o corpo pede pelo primeiro mergulho, é entrar de cabeça.

E então, vem o capote.

A minha primeira experiência, que talvez deveria ter sido uma sessão, nada mais foi do que um baunilha apimentado. Focado em um sexo penetrativo, orientado para o prazer da outra parte, sem after care, sem muitas práticas, sem nada. Parece que ali reinou o “laissez faire laissez passer”. E eu, ainda sem domínio racional, simplesmente fui questionar aquilo na minha mente meses depois.

Nota: nem sempre aquela promessa de marzão de Tinder vai te proporcionar um mergulho bom e seguro. Às vezes é aquela enseada sem graça, que você vai sair dali e, ao voltar pra areia, vai se perguntar “uai, mas era só isso?”. Cuidado com o marketing pessoal, viu?

O quase afogamento

O mal do capote é que você volta, no máximo, com uns arranhões básicos e areia por todo o corpo. Deu um sustinho, um medinho, mas talvez não seja suficiente para você desamarrar o pobre coitado do Divertidamente que tá ali no canto se debatendo pra te trazer racionalidade.

E você talvez pense: ok, dá para ir de novo da mesma forma, não vai dar nada não. Tem risco não.

Só que as marés mudam. E nessa vez, foi um mar revolto que me recebeu.

A minha segunda experiência foi o clássico exemplo de “não faça isso”. Nunca. Jamais.

Envolveu bebida. Primeiro encontro. Não conhecer bem a pessoa. Escolhas erradas. Nenhum acordo prévio além de safeword. Nenhum acordo de limites. Sem aftercare. Sem resistência e movimentação minha para ir para um lugar seguro e confortável para mim depois de todo o desconforto. Lembro, ainda, dos episódios de One Piece rodando, que a outra pessoa assistia, eu começando a sentir a inadequação, a sensação de paralisia, a letargia.

Fun fact: nunca consegui assistir One Piece depois disso, mesmo morrendo de vontade. Foi só revisitando essas memórias que entendi o motivo. Me jogava para lembranças que eu fazia questão de deixar guardadas numa caixinha no fundo do oceano.

Sabe o “tudo para dar errado”? Foi isso. É como mergulhar no mar de correnteza achando que “ok, eu sei nadar muito bem, vai dar tudo certo. Eu quero, eu vou, eu posso”.

Meus anos de estudos deixados de lado por uma frágil sensação de segurança. Vigiar o tempo todo é necessário, sabia? Eu tinha me esquecido. Erro rude de muitas pessoas: os estudos nos dão uma grande segurança? Sim, mas isso não é motivo para desligarmos os olhares atentos e nos movimentarmos na base prioritariamente da emoção. Às vezes achamos que estamos fazendo o certo. Não estamos.

É claro que emoção e razão precisam coexistir. A negação da emoção também é prejudicial. Mas elas precisam se equilibrar. Andarem lado a lado. Uma auxiliar a outra. Afinal, se não sabem, nenhum processo racional existe sem passar antes pelos sistemas emocionais. Mas abdicarmos da razão, bom, não é uma boa experiência, eu garanto.

De forma resumida: enquanto meu Divertidamente da razão berrava uma noite inteira para ser liberto, o responsável pelo pânico dominou a situação. Um subdrop pesadíssimo, carregado de crises de pânico sucessivas que só amenizaram quando eu acordei a pessoa com quem tinha passado a noite, pedi para ir embora (sem nem um copo d’água oferecido) e liguei para uma amiga domme, com quem conversei até acalmar e tomar meu café da manhã em um McDonald’s, aos prantos.

Minhas lágrimas salgadas me afogavam. Eu não conseguia respirar muito bem. Tudo era culpa. Eu havia permitido a mim mesma chegar aquele ponto, por uma empolgação de “vivenciar logo aquilo que eu tanto queria sentir na pele”. Carregava em mim o desespero de ter algo visceral. Era tempestade em um mar revolto e engoli muito mais água do que eu podia suportar.

Até hoje, quando me lembro daquele dia, há algo inadequado que eu sinto em minha pele. É literal mesmo essa sensação. Eu sinto ela agora no meu ombro, no meu quadril, em todos os pontos que me senti tocada naquela noite. Eu me afoguei pesadamente naquela noite. E por sorte, consegui sair daquele mar. Foi um drop. Poderia ter sido muito pior, diante da minha inconsequência.

Mergulhando no mar com a maré boa

Eu havia decidido dar um tempo em qualquer tipo de busca dessa natureza. Meu FetLife e perfil no Senhor Verdugo (old school, baby rs) ficavam às moscas. Todo perfil BDSMer no Tinder, para mim, era um red flag em potencial. Deixei de acompanhar os grupos. Deixei de acompanhar praticamente tudo. Vez ou outra eu lembrava de abrir o FL, via umas mensagens, perdia o interesse 3 minutos depois. Eu não queria buscar nada. Tudo soava como um alerta ruim, uma lembrança de uma noite péssima.

Eu estava deitada na areia da praia recuperando o ar, cuspindo a água que ainda estava nos meus pulmões. Olhando para o céu e ignorando completamente o mar, independentemente da maré que estivesse. Para mim, aquilo havia se tornado indesejável, perigoso. Eu só queria estar segura, era pedir demais?

Quando eventualmente passava do desprezo inicial (algo raríssimo), e vinha a pergunta “o que você busca aqui?”, minha resposta era sempre padrão: “Em primeiro lugar, conseguir conversar com pessoas do meio […] Sinto falta de, pelo menos, essa troca de ideias. Talvez seja essa a prioridade. E estabelecer confiança com o meio. O que vier daí é lucro”.

Muitos ghostings vieram disso. Claro. Muitos ansiosos por uma negociação miojo e uma D/s fast food não queriam ter o trabalho de conversar.

Confiança era um valor que eu aprendi a valorizar com a alma (e com as dores da vivência anterior). Nada se constitui no BDSM sem isso. E isso não se conquista em uma mesa de bar ou com um flerte barato. Ou com pseudo-tops que abordam já querendo mandar em você com 15 minutos.

Em uma metáfora muito interessante, no meu processo terapêutico, em um outro momento da vida, minha psicóloga me disse “você está diante do mar e você tem duas opções: ou você vai entrar nele de novo, com tudo que aprendeu nos seus capotes anteriores, ou você vai virar as costas e volta para casa. Mas ficar nesse lugar que você está, não dá para ficar”. Era sobre outro contexto, mas se aplica aqui. Eu precisava entender se eu ia abandonar o BDSM de vez (pelo menos naquele momento), ou se utilizaria tudo que aprendi no amor e, principalmente, na dor, para vivenciar o que eu queria.

Ok, eu admiti que um dia queria voltar a mergulhar. Mas precisava de uma maré favorável. Que me permitisse nadar. E um dia, aquela resposta padrão não recebeu um ghosting. Eu confesso que nem de longe estava pensando que aquilo chegaria a uma Ds em algum momento.

A ironia de que as coisas surgem quando você não está buscando por elas.

Mas, para além de saber como entrar nesse mar, prezando pela minha segurança, eu não tive pressa. Entender as oscilações e movimentações, identificar correntezas, sem deixar de admirar a beleza hipnótica das ondas quebrando no horizonte. Afinal, há uma beleza tão estonteante naquilo que parece caos que, se você se deixa levar, é muito fácil que uma maré perigosa te afogue. Ou te carregue aos trancos e barrancos até a margem.

Ironicamente, apenas hoje eu entendo muito do que aconteceu nesse período. Nem sempre a maré estar favorável fazia com que eu mergulhasse. Às vezes eu colocava a ponta do dedo e fugia um bom tempo para a areia, pensando que ali era melhor, ainda que a maré fosse segura. Nenhum processo é linear

E olha que não foi pouco tempo diante daquela maré específica, decidindo se valia a pena tentar entrar ou se era melhor só observar mesmo. Mas talvez tenha muito disso. Eu não tinha pressa em entrar. Eu respeitava meu tempo, e aqui vai uma segunda nota: não deixe que ninguém, nem mesmo as tuas próprias afobações, roube teu tempo certo de mergulhar.

Na verdade, aqui uma pequena confissão marota: eu nem esperava colocar meus pés nesse mar. Eu lembro, ainda, com uma profunda exatidão de detalhes e sensações, quando “testei a água” (para usar uma expressão velha conhecida desta dinâmica, ironicamente) sem querer, em um evento caoticamente inesperado. Ainda no meu rompante racionalizante que me acometeu diante de tantos traumas, ainda quis esperar para ver se aquela sensação delirante de entrega não era fruto de uma afobação com a ideia da dominação, e não com o dominador em si. E essa demora foi extremamente lenta, viu?

Tanto que foi recente a compreensão (olhando para o espelho retrovisor) que esse momento de “confiança para entregar o poder para aquele dom e não para a ânsia de dominação em si” já existia há algum tempo. Já estava ali quando eu confessava auto-percepções difíceis. Mas mineira é bicho tinhoso, confiar na própria confiança às vezes é difícil. E um animal ferido vive entocado. Por isso, não desejo que passem pelo que eu passei nesse processo.

Eu precisava me sentir segura. E hoje me sinto contemplada nisso até para sangrar algumas vulnerabilidades bem difíceis (não, sem claro, um drama interno e intenso quando exteriorizo. Mas isso é do meu jeito canceriana de ser). Mas porque ao longo do tempo foi possível testar essa água. As vezes dar uns catiripapos quando eram necessários. Conhecer, compreender, entender vulnerabilidades minhas e da outra pessoa, ser acolhida e acolher nesses momentos. Saber ter os momentos de reserva pessoal para analisar as questões de longe, no racional (e ser respeitada por isso). Porque eu queria me preservar — há toda uma vida para vivenciar uma Ds, por que correr?

É claro que ainda há a sensação gostosa da adrenalina. O mergulho hoje me permite sentir segura para curtir o êxtase sem medo. Eu aprecio o mar. A maré consegue me conduzir sem me machucar (exceto do ‘jeito bom para uma masoca’), e eu consigo me sentir tranquila para ser conduzida pelo balanço das ondas sem o medo de me afogar ou vir capotando até a areia.

Eu me permito mergulhar. Porque sei que entrei do jeito certo agora.

Talvez fosse melhor um relato mais direto ou visceral? Talvez. Mas como disse, talvez muito se encaixe na metáfora do mar. Ou eu sou uma pessoa com saudades do balanço das ondas. Rs. Espero que tudo, desde o lado ruim ao lado bom, possa ajudar a quem está chegando agora a não quase se afogar como aconteceu comigo.”

SubMundo por Hacking Sex.

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AUTORA

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Uma resposta

  1. Adorei o texto, Bela! Com certeza a maioria de nós tem experiências similares de tombos e levantes, em situações únicas. Mas são os tombos que nos preparam para a vida, que nos moldam ao longo da vida. E aprender com eles nos torna cada dia mais sábios. Uma pena que, à medida em que nos tornamos psicologicamente mais fortes, o corpo siga o caminho contrário, rsrs…

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