ESTEREÓTIPOS E OS JUÍZES DO BDSM

Essa semana uma postagem “boba” me fez entender o quanto nossa comunidade que se diz libertária ainda está presa a estereótipos e julgamentos.

Respondendo a um dos jogos comuns que acontecem através da ferramenta stories do app Instagram entre os membros do meio BDSM, postei que o meu gosto musical que ninguém imaginaria seria um rock, mas fui alertada de que seria uma surpresa mesmo se eu dissesse que gostava de funk. Achei estranho porque para uma carioca que adora dançar, gostar de funk não seria nada incomum, mas mesmo assim postei.

Acabou que quem foi surpreendida pela reação das pessoas fui eu mesma. Pelo que pude constatar, eu passo uma imagem de “moça séria, quietinha e inteligente”. Logo, alguém com esse estereótipo gostar de funk seria estranho. Sério?! Porquê?!

Eu sei que há uma parcela elitizada da população que não enxerga o movimento funk como uma expressão cultural, eu só acho ruim que nós enquanto pessoas marginalizadas tenhamos esse olhar para com outras culturas. Não quero aqui convencer ninguém a gostar do funk como estilo musical, mas minha veia militante precisa dividir com você leitor que uma música dita erudita tem o mesmo valor de expressão cultural que o funk. Talvez você possa dizer que há muitas letras vulgares, com apologias dentro do funk e é verdade esse bilhete. Mas é verdade também que muitas dessas letras dialogam com o cotidiano de muitas pessoas para as quais o poder estatal não tem olhos.

O funk escancara uma realidade que a sociedade não quer mostrar e que prefere invisibilizar. Mas assim como nós kinkster não deixaremos de existir quando nos atribuem o título de traumatizados, o funk também não será banido se o tratarmos como não cultural e de menor valor. E, muito menos, devemos julgar que uma pessoa é menos culta por gostar de funk ou mais culta se gostar de ópera, por exemplo.

É nossa responsabilidade social dentro da comunidade BDSM quebrar esses paradigmas em vez de reforçar esses estereótipos. A mudança tem que começar em nós para que possamos difundi-la para aqueles que não nos compreendem.

Após essa longa introdução com esse importante desabafo, gostaria de compartilhar com vocês a tradução de um texto de Guy Baldwin retirado do livro Ties that Bind que acredito que dialogue com a reflexão que quero trazer para vocês hoje.

Boa Leitura!

Não vamos levar os juízes da velha guarda tão a sério

“Se não for divertido, você não está fazendo direito.” – Mistress Carolyn

Como se os relacionamentos SM já não fossem complexos o suficiente, muitos de vocês que se interessam por relacionamentos devem, em algum ponto, tratar sobre o sempre presente problema do purismo. Refiro-me à necessidade que algumas pessoas têm de fazer julgamentos sobre se o seu relacionamento é um “verdadeiro relacionamento SM” ou se você é um “verdadeiro Mestre” ou um “verdadeiro masoquista” ou um “verdadeiro escravo” ou se “realmente faz parte da cena”.

Às vezes, parece que um grande conclave foi realizado em algum lugar no qual os padrões para a perfeição foram, de alguma forma, acordados (imagine só!). Alguém poderia pensar que um grupo de pessoas naquela reunião foi selecionado como Juízes, selecionados com base em algum tipo de pureza erótico-ideológica para impor ideais de correção SM.

Ao longo dos anos, as cartas impressas na Drummer confirmam isso. Recentemente, houve outra carta de mais um escravo atuando como Juiz sobre o desempenho como bottom de uma pessoa que ele nunca tinha conhecido

Como terapeuta, vejo muitas consequências desagradáveis quando as pessoas em relacionamentos, ou que os desejam, tentam se encaixar em ideais bidimensionais. Por exemplo, um ideal purista sugere que um “verdadeiro escravo” obedece a todas as ordens de seu Mestre. Nenhum dos juízes do BDSM teve que se sentar comigo na sala de terapia enquanto eu aconselhava um jovem que, querendo seriamente provar a um Top que era um escravo, foi preso por seguir uma ordem irresponsável.

Também existe alguma noção entre os Juízes puristas de que os chamados Mestres e/ou Tops “verdadeiros” nunca alternam posições nas práticas ou fazem coisas relacionadas a bottoms. Certamente, alguns dos juízes franzem a testa quando os Tops dizem aos seus bottoms para beliscar os seios ou dar um tapa na bunda. E os juízes enlouquecem quando os Tops viram a chave para entrar em um relacionamento como um bottom.

Da mesma forma, bottoms que aparecem como Tops muitas vezes não são levados a sério por outros bottoms até que um intervalo de tempo decente (?) tenha passado; eles são julgados como imprevisíveis ou não autênticos ou algo parecido. Há até juízes que descredibilizam Tops por beijar bottoms.

É ao mesmo tempo divertido, irônico e deprimente reconhecer que alguns na cena SM/Leather empregam as mesmas táticas opressivas de “isso não é OK” para padronizar os comportamentos SM que as pessoas não-SM usam para nos “normalizar”. Alguém poderia pensar que já nos cansamos desse julgamento de fora da comunidade SM; certamente não temos que fazer isso um com o outro.

Até onde eu sei, não há uma maneira única de fazer nada. Há muitas maneiras de ser um verdadeiro escravo, ou Mestre, ou estrela do rock, ou corretor da bolsa ou qualquer outra coisa. Os relacionamentos não são diferentes. O livro de regras definitivo não foi e não pode ser escrito. A faixa de variabilidade humana é muito ampla.

O SM e os relacionamentos SM não serão colocados em caixas pelos juízes, não importa o quanto eles possam apontar dedos. Só você está qualificado para avaliar se um relacionamento em que se encontra está correto. Afinal, somente você possui as informações sobre como se sente no relacionamento.

Existem muitas pessoas por aí, tanto gays quanto heterossexuais, que têm os chamados relacionamentos “corretos” e que também são super infelizes. A melhor prova de fogo é se o relacionamento funciona ou não para você, e não se está de acordo com o ideal de outra pessoa. Deixe-me ilustrar.

Já vi dois Mestres jantando com seus escravos em duas mesas separadas no mesmo restaurante. Naturalmente, os garçons em cada mesa colocavam os menus diante do Mestre e do escravo. Em uma mesa, o escravo pegou seu menu e deu-o, fechado, para seu Mestre. O Mestre pediu o jantar para ambos e depois pagou a conta. Na outra mesa, o Mestre pegou seu cardápio, fechado, e o entregou a seu escravo. O escravo pediu o jantar para ambos e, mais tarde, foi ele quem pagou a conta. Vemos imediatamente que cada Mestre e escravo resolveram esta situação de maneira muito diferente. Embora a forma de cada relacionamento pareça oposta, aparentemente, ambas são corretas para as pessoas envolvidas. Nos relacionamentos SM, como na vida, as coisas nem sempre são o que parecem. Esse fato é o que torna os julgamentos dos relacionamentos difíceis e tolos.

Eu conheço Tops que ordenam que seus bottoms usem tênis brancos em bares Leather como uma humilhação – isso significa que os bottoms não fazem “realmente parte da cena”? Eu também conheço Tops muito sádicos que não gostam de couro, que vão aos bares em trajes casuais com seus bottoms trajando couro e batem em seus submissos em público.

De acordo com os estereótipos da velha guarda, parece que o “mauricinho” deveria ser o bottom, ou mesmo baunilha, mas, neste caso, acontece o contrário. Ainda é verdade o que dizem sobre não julgar os livros por suas capas. Se, por algum motivo, funciona para um bottom usar um bracelete no braço esquerdo, então quem deve julgar? Talvez ele queira se defender de Tops novatos naquela noite ou queira mudar de posição pela primeira vez. Se um Top deseja usar acessórios de bottom, essa é uma prerrogativa dele. Quem disse que nos relacionamentos é o Top quem tem o melhor julgamento em todos os assuntos? Todos nós sabemos que em algumas coisas os bottoms podem ter alguma habilidade superior que os Tops sábios não vão querer desperdiçar apenas para provar quem manda. Seus relacionamentos na vida kinky devem ser livres para assumir qualquer forma que for necessária para atender às suas necessidades e às necessidades de seu (s) parceiro (s).

Essa forma também deve ser livre para evoluir conforme você cresce e muda. Você, que deseja e é capaz de ser tão livre e flexível, merece elogios por sua honestidade, amor, compromisso e imaginação. Os juízes que reprovam aqueles que moldam seus relacionamentos de acordo com outros padrões estão simplesmente revelando as escolhas que fizeram por si mesmos.

A variação pode adicionar riqueza à cena, e vamos ser mais eficientes ao encorajar a experimentação e a diversidade do que em repreender aqueles que deixam os estereótipos para trás em sua própria busca por felicidade e satisfação no mundo dos relacionamentos SM.

Referências:

BALDWIN, Guy. Let’s Not Take the Olde Guard Judges Too Seriously. In: Ties that bind: The SM/Leather/Fetish Erotic Style. Daedalus Publishing Company: Los Angeles, 1993.

Tradução: belarina

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Uma resposta

  1. É impressionante como existem fiscais do cu alheio no mundo. Todos se acham no direito de julgar, de dizer o que é certo ou errado. Claro, regras existem para que possamos conviver harmonicamente (ou pelo menos não viver em guerra o tempo todo). Mas exageros são descabidos, se permanêcessemos engessados a padrões estaríamos usando saltos Luis XV e perucas até hoje. A sociedade evolui, que bom!
    Mas muito me impressiona e entristece ver que os comportamentos baunilha se repetem no mundo BDSM. Uma esfera onde ninguém é obrigado a estar, e que deveria ser libertadora, permitindo às pessoas externar seus desejos íntimos.
    Acredito que cabe a nós que estamos neste meio ligar o foda-se para comentários e comportamentos preconceituosos, assim como muitos de nós o fazem na vida baunilha. Quem aponta o dedo e critica alguém está falando muito mais dele mesmo do que da pessoa criticada.

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