Por que gostamos de BDSM?

Essa é aquela pergunta que todos os membros da comunidade já responderam em algum momento da sua estadia, seja em uma conversa com um neófito, baunilha ou até os experientes. Caso essa pergunta ainda não chegou pra você, se acalme, ela irá chegar (ela sempre chega).

Lembro de ter feito essa pergunta inúmeras vezes para várias pessoas da comunidade em minhas pesquisas e encontrei alguns padrões nas respostas. Porém, todas em caráter pessoal e completamente especulativo e isso me intrigou um bocado, então busquei cruzar as respostas dos praticantes (inclusive a minha) com a ciência e tentar responder essa incógnita: porque praticamos BDSM? Vem comigo!

Como você deve ter lido aqui, eu sou o colunista de sábado e tenho como objetivo apresentar algumas linhas de raciocínio, construções e fatos ao longo da nossa história a fim de enriquecer as bases epistemológicas dos praticantes. Não me posiciono como o portador da razão, muito pelo contrário, apenas um pesquisador que sempre está encontrando coisas novas e adoraria dividi-las com todo mundo.

 

Amarrando as pontas

Eu disse aqui que o BDSM seria uma contracultura sexual (como foi concebido) e ainda apresentei outras visões sobre cultura e subcultura, e também afirmei aqui que essa visão de contracultura não veio para o Brasil, pois aqui, ao analisar as práticas da comunidade como uma subcultura e estamos longe de uma contracultura, pois nós não nos preocupamos em questionar o status quo, apenas mantemos a heteronormatividade e os padrões sociais de gênero, raça e classe. Uma pena.

Essa por si só é uma grande questão para partirmos nessa resposta, certo? Ainda me alongando um pouco, trouxe contextos de fora para nossa discussão, mencionei que houve um importante livro erótico escrito por uma mulher francesa em 1954 que influenciou e a construção da comunidade e teve altos e baixos em várias partes do mundo, inclusive processos judiciais envolvendo uma imposição do Estado contra os praticantes

Você provavelmente terá uma boa visão do macro e também uma visão pessoal do porque praticamos, se essa cultura (ou sub, ou contra) faz sentido e entender os movimentos políticos externos das nossas práticas, mas, e os internos? O que mexe aí dentro de você?

Sabemos que o termo BDSM está em voga. Ele aparece no Tumblr, twitter, instagram, facebook e em todo o lugar que você queira procurar. Ele sempre se mostra muito atrativo né? Mas por que?

 

O que é libido?

Acredito que, para te apresentar o BDSM, usaram o termo “fetiche”. Falaram que o BDSM se trata de fetiches em couro, chicotes, amarras ou até mesmo em pés pois tudo isso ressalta hierarquia, sendo então a hierarquia o “fetiche central” das práticas dessa comunidade. 

Eu gosto dessa linha de raciocínio, mas só até a página dois. O que nos faz ter fetiche pela hierarquia e porque realizar esse fetiche nos inspira a continuar praticando sempre que possível?

Há um ponto em questão anterior a palavra fetiche que é constantemente negligenciada: libido.

Partindo de um ponto de vista etimológico, a palavra libido vem do latim, significando “anseio ou desejo“, e é caracterizada como a energia aproveitável para os instintos de vida. O filósofo cristão Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho) foi o primeiro a distinguir três tipos de desejos: 

  • libido sciendi, desejo de conhecimento;
  • libido sentiendi, desejo sensual em sentido mais amplo;
  • libido dominendi, desejo de dominar;

É importante entender que Agostinho compreendia uma diferença entre a libido moral, espiritual e sexual, sendo assim, como suas obras foram discutidas por todo o território que defendia e sustentava o Cristianismo, esse pensamento sobre libido (em ser o desejo original de praticar toda e qualquer coisa) seria a “base” das teorias vindouras. 

Tomando a liberdade de questionar um pouco mais esse pensamento original das questões sobre libido, Agostinho estaria narrando libido tal qual a palavra karma no sânscrito contido nos vedas. Ambas se relacionam a força motora para tomar qualquer atitude e ambas as palavras foram sendo ressignificadas pelo ponto de vista do orador e da cultura que estava sendo analisada. Hoje, libido possui uma outra conotação, tal como o conceito de carma, tenha isso em mente, pois fará sentido lá na frente.

Biologicamente falando, a palavra libido está completamente associada à questão sexual, sendo o impulso sexual geral. A testosterona e a dopamina são os hormônios que agem sobre os neurotransmissores no núcleo accumbens (NAc) que regulam a libido. 

A área médica reconhece que os fatores sociais, como trabalho e família, e fatores psicológicos internos, como personalidade e estresse, podem afetar a libido, sendo assim, libido também pode ser afetada por medicamentos, estilo de vida e problemas de relacionamento e idade (por exemplo, puberdade). 

Então, a mesma palavra aqui possui duas conotações, sendo o desejo primário de realizar qualquer coisa e, em segundo momento, algo estritamente sexual. Essas duas visões influenciaram tanto a psicologia analítica (Jung) quanto a psicanálise (que teve sua origem com Freud pela hipnose e psiquiatria).

Freud foi considerado o criador do uso moderno do termo libido, pois em seus primeiros trabalhos, a libido foi definida como o impulso vital para a autopreservação da espécie humana, e compreende a libido como a energia sexual no sentido estrito para procriar, unicamente (uma forte relação com a área médica). 

Mais tarde, ele volta a enfatizar essa visão mais generalista de que o impulso de autopreservação e confronta a libido com o instinto de morte. Em seus textos posteriores, especialmente em “Além do Princípio do Prazer” (1920), ele usa, em vez da palavra libido, o termo Eros, que descreve como sendo a energia que impulsiona a vida e na obra “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), ele definiu a libido como sendo a “energia de tais instintos, que tem a ver com tudo o que pode ser resumido como o amor.”

Curiosamente, Freud modifica sua definição de libido de acordo com seu progresso em estudar e analisar o comportamento humano e comparar algumas coisas que passam a fazer mais sentido para ele, pois agora, não está relacionada somente com a sexualidade, mas também está presente em outras áreas da vida, como nas atividades culturais (algo próximo a que Agostinho retratou).

Quando Freud equivale libido ao conceito grego de Eros, que não é exclusivamente o desejo sexual abrangendo toda a força vital e vontade de viver, libido ganha um novo significado sendo o desejo de criar vida e favorece a produtividade e a construção. Em seu artigo de 1925 “As Resistências à Psicanálise“, Freud explica que o conceito psicanalítico de energia sexual está mais alinhado com a visão platônica de eros, como expressa no Banquete, do que com o uso comum da palavra “sexo” como relacionado principalmente à atividade genital. 

“O que a psicanálise chamou de sexualidade não era de modo algum idêntico à impulsão à união dos dois sexos ou à produção de uma sensação prazerosa nos órgãos genitais; tinha muito mais semelhança com o Eros todo-abrangente e pervasivo do Banquete de Platão”

Ao contrário de Freud, Jung adota a definição de libido, em geral, como sendo toda a energia psíquica/mental do homem e considera que esse “poder” seria semelhante ao conceito do ch’i ou prana, ou seja, como uma energia vital e geral para realizar qualquer coisa. Diferente de Agostinho e o sânscrito, visto que ambos denominam ações (libido e/ou karma), Jung ressalta que o libido seria a mesma energia vital que nos mantém vivo, como um sopro divino ou alma. Aqui fica claro que Jung se distancia do conceito adotado por Freud e também da medicina e se apega ao conceito presente em outras culturas.

 

Qual a relação da libido com o BDSM?

Vamos começar a botar os pingos nos ís. De todos esses conceitos apresentados, eu prefiro me basear no conceito biológico para seguirmos essa análise, visto que o núcleo accumbens (NAc), é uma parte da via de recompensa, que é responsável pelo prazer. É sabido que a NAc e a via mesolímbica estão envolvidas na modulação das respostas comportamentais aos estímulos que ativam as sensações de recompensa. 

Sendo assim, há um estudo de 2013 que analisam os praticantes do BDSM e notaram melhorias em seu comportamento na sociedade e interno, foco e outras questões positivas, como relacionou a Equina Nur em seu texto analisando as questões curativas da comunidade BDSM. 

Estamos analisando aqui principalmente a área médica seus benefícios enquanto praticantes, pois a via de recompensa se relaciona com a dopamina e essa está envolvida no controle de movimentos, aprendizado, humor, emoções, cognição e memória! 

Analisando a história do casal Aurousseau apresentado no filme Juiz SM, é perceptível a mudança de humor e criatividade da Magda (esposa) depois de começar a se relacionar com sua libido de forma proveitosa e chegar ao seu orgasmo através das práticas SM.

Aqui mora uma coisa bem interessante: Se libido está relacionado a parte sexual, muitos não possuem a mesma sexualidade, sendo assim, seria impreciso dizer que todos alcançarão o seu orgasmo pelo mesmo modus operandi (sexo convencioal).

Na fisiologia sexual, falta de libido é referida como frigidez e muitas doenças (incluindo doenças mentais e doenças psicossomáticas), estão relacionadas com falta de libido ou a perda de libido, por exemplo a depressão, anorexia, cirrose, hemocromatose, hipogonadismo, etc.

Não faltam exemplos de que a boa relação com a nossa libido pode melhorar consideravelmente nossa vida e nossa autoestima e como bem retrataram Darren Langdridge e Trevor Butt  no artigo científico chamado The erotic construction of power exchange:

“Os construtivistas não precisarão ser convencidos de que a vida erótica é, pelo menos em parte, o produto de um processo de construção pessoal.” (…) “Na sociedade contemporânea, estamos testemunhando a proliferação de novas narrativas sexuais. Embora tenham de se basear na experiência individual, as novas identidades sexuais requerem um clima social para florescer.”

Então, demandamos de aspectos sociais para reconhecer uma nova identidade sexual que se encaixe com a nossa libido para então possamos ter essa vivência, então nossa sexualidade é uma consequência de uma experiência bio-psico-social. 

 

Nós temos fetiches ou uma sexualidade?

Depende de quem irá contar essa história, pois além de Karl Marx e Charles de Brosses, todos os outros estudiosos que usaram o termo ‘fetiches’ e ‘fetichismo’, usaram para retratar ou expor uma sexualidade que até então não havia sido reconhecida como tal, inclusive era dito, pelas mesmas pessoas que um homem que provavelmente hoje se consideraria homossexual, sofreria do fetiche de inversão (Alfred Binet em “O Fetichismo no Amor” – 1887), portanto, só existia uma sexualidade possível (heterossexual) e todas as outras seriam fetiches em maior ou menor grau e todas estavam erradas.

 

Conclusão:

Falar de fetiches e sexualidade é sempre um tema complexo e acredito que o melhor caminho para faze-lo é relacionado a libido. Nos próximos artigos irei mergulhar ainda mais nesse tema, no entanto, precisava desenhar a visão moderna da palavra libido para que nós possamos tecer uma linha crítica e, a partir daqui, começar a construção do porque praticamos BDSM, porque essas questões mexem conosco tão profundamente.

Te vejo semana que vem onde pretendo elaborar exatamente essa linha tênue entre fetiches e sexualidade, passando por uma análise histórica e recomendando um filme! 

Me aguarda até lá?

AUTOR

Mestre Sadic​​​​

​Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.

Café Fetichista: https://m.youtube.com/playlist?list=PLlRq4n48kKVE4hEDAtL_3EDYdiiSGwt1P

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Respostas de 2

  1. Bom dia!
    Sou leitora assídua da sua coluna neste site e adimiradora de seu trabalho nos artigos bem fundamentados . Parabéns e obrigada por compartilhar suas opiniões e conhecimento, que ao meu ver são importantes para a comunidade BDSM.
    Abraço cordial,
    submissa marilys {L. B.}

    1. Olá, Marilys. Saudações à ti e ao seu Senhor.

      Muito obrigado pelo apoio e incentivo! Confesso que não é uma tarefa fácil reunir tudo, mas fico extremamente contente com os feedbacks positivos! Obrigado mesmo!

      Saudações! 🙂

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