YES, SIR

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Autor: Willian L. Canedo

Ele chegou em casa após um longo e entediante dia de trabalho. Seu emprego como auxiliar administrativo, com suas quase dez horas diárias, fechado em um escritório pequeno e cheio de móveis velhos em um prédio alto que tinha um elevador irritantemente lento na Augusta, não era a profissão de seus sonhos, nem mesmo algo que havia aprendido a gostar de fazer, e nem de longe era algo que lhe rendia um bom pagamento; era o tipo de serviço burocrático e estranhamente confortável, que lhe garantia uma certa estabilidade, o suficiente para arcar com os custos de um pequeno apartamento do centro de São Paulo, pedir um delivery nos fins de semana e sustentar alguns gostos. Não tinha amigos, apenas colegas –achava todos os seus companheiros de trabalho chatos, sempre fazendo piadas sobre sua não-muito-atraente atitude tímida– e a rotina estressante lhe custava alguns fios de cabelo, que agora se acumulavam mais e mais no travesseiro em cada noite mal dormida. Todo dia anotava no celular “comprar xampu anti-queda”. Nunca lembrava.

Enquanto procurava na pasta as chaves do apartamento, sentiu uma vibração no bolso. Olhou o relógio e seu coração tropeçou nas batidas: sabia exatamente de quem era aquela mensagem. Destrancou a fechadura um pouco apressado e pôs a pasta em cima da mesa, sentando no sofá já um pouco velho e tirando do bolso dianteiro direito o aparelho. Ao acender a tela, viu a notificação do aplicativo com a mensagem –simples, curta e direta, como sempre– daquele que seria hoje sua fonte de desestresse. Respondeu com um breve e impositivo “ÀS 8. NÃO SE ATRASE”, que foi imediatamente respondido de volta com um “SIM SENHOR”. Deixou o celular na cama, pegou uma toalha e foi tomar banho.

Enquanto se enxaguava, pensou nos colegas do trabalho, com suas piadas batidas e sua cordialidade forçada. Regularmente se questionava como havia parado naquele emprego, com aquelas pessoas e aquele ambiente desconfortável. Não tinha gosto por ninguém ali e nem abertura o suficiente para ser quem realmente era. Se tratar de sua sexualidade já seria complicado, imagine comentar sobre seus outros… gostos. O medo (e até certa vergonha) o dominava mais do que a vontade de se expressar naquele ambiente, e no final nem achava tão importante assim. Nunca entendeu ao certo, e por não entender também preferia não se mover; na areia movediça, ou você fica parado ou afunda. Terminou o banho, se secou e foi para o quarto.

Abriu no celular sua playlist especial, denominada Classic sadist. Quando começou a soar o primeiro Concerto per violoncello de Vivaldi, derrubou da cintura a toalha, caminhou nu até o guarda-roupa e abriu uma porta que não abria com tanta frequência quanto as outras. Era seu pequeno segredo, seu tesouro escondido, suas mais amadas preciosidades que escondia ali. Seu arsenal. Iluminados por uma tira de led vermelho, ficavam naquela parte do guarda-roupa uma série de instrumentos, vestes, acessórios, ferramentas e apetrechos de uso bem específico. Tudo em preto reluzente, os materiais variando entre couro, látex, lycra, seda, metal e borracha, estavam ali dispostos os seus materiais mais valiosos.

Abriu uma gaveta e tirou de dentro uma jockstrap de couro, preta, como todo o restante, com cadarços trançados na parte da frente que lembravam os espartilhos europeus do século XVIII. Ergueu a peça à altura dos olhos, revirando-a entre os dedos, analisando se seria adequado para aquele encontro em particular, e vestiu. O toque do couro frio em suas partes íntimas transmitia uma sensação de poder como nada mais no mundo o fazia sentir. A pressão do elástico em suas nádegas e o leve desconforto da dureza do material faziam-no sentir-se outra pessoa, distante de tudo, dos colegas chatos, das mesas velhas, do prédio alto com elevador lento. Naquele momento, à meia luz e ao som do mestre Vivaldi, enquanto se paramentava, era outra pessoa, outro homem

Tirou da parte inferior uma calça de couro trabalhado, com detalhes em costura nos joelhos e uma abertura proposital entre as pernas, na frente. A parte frontal da jockstrap encaixaria perfeitamente ali, como que formando uma só peça, uma ilusão de não-nudez que o deixava incrivelmente satisfeito. Mais uma vez sentiu o poder emanando do couro frio que tocava sua pele enquanto deixava emergir a atitude que guardava dentro de si para aquelas ocasiões. Deixou escapar um grunhido abafado enquanto fechava a calça ao redor da cintura e voltava o olhar para o cabideiro. Tirou uma camisa de couro, manga curta, com bolso do lado direito e detalhes nos ombros que lembravam algo de militar. Desabotoou calmamente botão por botão, enquanto sentia em seus dedos a textura macia da vestimenta. Aproximou a peça do rosto, inspirando longamente o aroma do material e não conseguindo segurar um gemido de satisfação em relembrar aquele cheiro. Em breve, aquele estaria misturado ao seu próprio aroma, e ao cheiro de borracha e látex e vaselina.

Resolveu que aquele dia seria um dia de outra abordagem, e pôs de volta a camisa no cabide. Em seu lugar, retirou, de outro cabide, uma peça que, para algum desavisado, deveria parecer apenas um emaranhado de tiras de couro e fivelas de metal prateado, mas que ele conhecia muito bem e cujo efeito era extremamente poderoso em seu interior. Vestiu o harness em forma de H, sentindo o couro se moldar ao redor do seu peito enquanto os violinos do Concerto Veneziano ressoavam furiosamente pelo quarto, embebendo-o em uma esfera do mais puro êxtase ao apertar cada fivela da peça. Sentiu o metal gelado tocar seus pêlos, deixando seus mamilos intumescidos e ansiosos

Tirou duas tiras de couro com fivelas que usava ao redor dos bíceps, como bracelete. Percebeu que, apesar de não ter os braços mais bem definidos como aqueles dos atores dos filmes que assistia, o simples toque apertado do couro o fazia sentir-se forte. Pegou um par de botas altas, lustrosas, escuras como a noite lá fora se tornava agora. Sempre que acordava atrasado e tinha que calçar correndo os sapatos amarronzados que usava para trabalhar, tropeçava e se desequilibrava, mas agora ele não era mais aquele outro das manhãs de correria. Calmamente e sem se desequilibrar por nenhum segundo, calçou as botas, sentindo a aura de confiança que elas inspiravam. Calçou também um par de luvas de couro preto que vinham até metade de seu antebraço, e ainda uma jaqueta de couro preto fosco, trabalhada nos ombros e cotovelos, com zíperes em metal grosso prateado que decidiu deixar aberto para que aparecesse o harness por debaixo. Tirou por último do guarda-roupa um cap parecido com o item policial, mas todo preto e, mais uma vez, todo em couro brilhante. Colocou na cabeça, respirou fundo e, enfim, já não havia nenhum resquício daquele que era momentos atrás. Sentia-se completamente outro.

Passou a selecionar quais instrumentos usaria. Retirou do armário uma palmatória toda revestida em látex com a ponteira em metal. Analisou entre as mãos a ferramenta, virando-a, sentindo seu peso e cheiro. Lambeu a parte em metal e colocou a palmatória sobre a cama. Pegou o rolo de cordas de material sintético e também jogou-o ao lado do outro objeto. Virou-se para a prateleira onde ficavam enfileirados vários plugs anais e consolos. Experiente e já imaginando o processo, pegou um plug pequeno, um médio e um consolo médio. O rapaz que o contatou era ainda iniciante, então começariam com calma. Ao início do Concerto in B menor Teatro alla moda, pegou nas mãos uma de suas preciosidades mais adoradas: um dildo preto gigantesco, 32 centímetros em material extremamente similar à pele humana. Aproximou do rosto, sentindo a textura e cheirando o material emborrachado. Um dia, pensou, mas não hoje. Tirou ainda um par de algemas prateadas reluzentes, com alguns arranhões dos usos que já fizera do apetrecho, uma mordaça com mordedor emborrachado, uma coleira em couro e uma fita larga de seda preta brilhosa que gostava de usar como venda –dava um ar de refinamento ainda maior ao ato. Lembrou de pegar o tubo de lubrificante especial para a ocasião –um que não secasse rápido demais, visto a duração e intensidade dos movimentos que precisariam ser feitos.

Olhou para o kit completo que colocara sobre a cama e organizou um por um pela ordem de uso, como fazia metodicamente antes de cada sessão. Sentiu-se orgulhoso ao ver o ambiente preparado para seus momentos de prazer mais verdadeiros, onde podia ser o homem que gostava de ser, o homem que queria ser mas não podia ser sempre. Encontrava naqueles momentos, naqueles objetos, nos materiais de que eram feitos, a compensação por seu dia a dia estafante. Encontrava ali, naquelas ferramentas e nas vestimentas que ornamentavam seu corpo, algo dele que havia se perdido há algum tempo entre os prédios altos, a correria, os papéis e carimbos, os desmandos dos chefes. Encontrava a si mesmo.

Foi até a sala, sentou-se no sofá, apagando a luz e acendendo um abajur de luz fraca e avermelhada. Retirou de uma caixinha que ficava sobre a mesa de centro um isqueiro e um charuto Danneman. Cortou-o com o cortador apropriado, acendeu-o e puxou. A fumaça viajou de sua boca ao nariz, sendo exalada e complementando a aura de poder que circundava o novo homem. Apreciou o gosto do tabaco em sua língua, colocando os pés cruzados um sobre o outro em cima da mesinha de centro e deixando escapar um gemido de satisfação. Antes que tivesse tempo do segundo trago, uma batida leve na porta. Respondeu, com uma voz muito diferente da que um dia tivera, um sonoro, grave e impositivo “Entre”. Havia chegado a peça principal do jogo, aquele que presenciaria a demonstração de todo o poder que agora ele mesmo emanava. Aquele que testemunharia quem ele havia se transformado após sua ritualística metamorfose. O jovem abriu a porta e foi se esgueirando para dentro, um pouco vacilante, e perguntou um tímido “Posso entrar?”. O homem levantou, caminhou passos firmes e precisos até onde o jovem estava, levantou a mão enluvada e, em um movimento forte e certeiro, esbofeteou o rosto lívido do rapaz. “Posso entrar, senhor?”

AUTOR

Willian L. Canedo

Autor tocantinense e pesquisador na área de análise do discurso e sexualidades, sempre demonstrou interesse pela literatura. Já publicou contos e crônicas em publicações diversas. Seus escritos, além da temática fetichista, também abordam questões sociais e psicológicas que atravessam a sexualidade.

Este conto foi publicado no livro “(Des)Encontros em Contos”, 2021

Link da editora. É uma coletânea de contos de autoria LGBTQ+

https://www.osexodapalavra.com/product-page/des-encontros-em-contos

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2 comments

  1. HG 9 maio, 2022 at 09:59 Reply

    Gosto como o personagem vai se desnudando devagar na nossa frente até a última frase. Parabéns pelo conto!

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