SOBRE FISTING, CAFÉS E RESPEITO

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por Fabricio Freitas – CigarMasterSP, 22/07/2020


Uma certa vez, marquei um encontro e fui muito animado encontrar um submisso com quem falava havia algum tempo. Pela correria do dia a dia, nunca era possível o encontro: ele era mais novo e tinha a faculdade à noite e trabalhava durante o dia. E eu sempre fui bem ocupado, pelo menos trabalhando e estudando praticamente todos os anos da vida adulta. Mas o dia chegou: ele já havia conversado comigo sobre todos os seus desejos e eu tinha certeza que seria um encontro delicioso. Nossos fetiches, taras e fantasias batiam e eu já havia identificado muito bem: o desejo dele era ser fistado enquanto servia um dominador mais experiente e que fumasse charutos também. Ele me implorou sigilo pois tinha uma vergonha imensa de imaginar que alguém soubesse que ele tinha seus fetiches e era submisso a outro homem. Mas não precisaria ter implorado, eu jamais comentaria seu nome com ninguém.

Trago comigo em minha bagagem alguns fetiches e/ou práticas que me acompanham desde sempre e, entre eles, o fisting, o smoking, a dominação e a submissão em si. Então era realmente um encontro para dar certo.

Levei um bom charuto comigo (um que gosto muito e inclusive é mais caro!), arrumei todos os instrumentos necessários, por assim dizer (luvas, J Lube para a lubrificação, muito papel toalha, alguns plugs e consolos para dilatação, uma pomada para aliviar a dor, um cinto de castidade para que não gozasse antes da hora que eu mandasse, entre outras coisas).

Nós nos encontramos no lugar marcado e, nos havendo visto antes somente nas telas, a surpresa foi incrível. Ele não só era mais lindo ao vivo como também era mais simpático e agradável. Conversamos um pouco e rimos de algumas coisas. Logo em outro local privado eu calmamente acendi meu charuto e tomei algumas doses de uísque enquanto ele beijava minhas botas e eu preparava algumas coisas sobre a mesa: o lubrificante, as luvas e todo o resto. E eu não gosto de me apressar; nem preparando minhas coisas, nem fumando meu charuto.

Enquanto eu estava vestido como fui, quase totalmente em couro mas com algumas peças mais maleáveis, ele estava nu. Esta é uma cena que me agrada muito deste jeito e, apesar de nem sempre haver a consciência disto, o submisso nu e o Dominador vestido é um fetiche per se.

Foram momentos deliciosos e tanto eu quanto ele nos realizamos muito e ele quase concretizou tudo o que imaginava. Quase: ele não conseguiu ser fistado por mim. Eu digo que ele não conseguiu ser fistado por mim pois eu tentei. Tentei por horas e, entre muitas outras coisas, claro, com toda delicadeza e ele chegou a uma dilatação incrível, mas não conseguiu. Eu senti a frustração dele no olhar e na voz.

Há uma responsabilidade muito grande sobre o corpo do outro que vem junto com o fato de ser o Dominador e não estou só falando sobre todos os preparativos que você geralmente tem que ter antes: temos que saber quando parar e dizer chega, basta, foi até aqui – e principalmente em uma prática como o fisting ou qualquer outra que possa realmente machucar o corpo de seu submisso.

Depois de algumas horas ali, estávamos cansados mas era necessário caminhar um outro caminho e que, para qualquer relacionamento e os que envolvem Dominação e submissão não estão de fora, às vezes são mais urgentes: conversar. Ele estava visivelmente chateado e frustrado, talvez com vergonha de não ter conseguido me dar o prazer que ele pretendia (palavras e engano dele, porque eu tive um prazer imenso com tudo) mas eu sabia que também era por ele mesmo. E não é à toa: a imaginação junto com (o exagero de) a pornografia podem trazer a impressão de que vivemos num mundo irretocável onde tudo é per-fei-to em qualquer sexo. Mas não: há limites, há partes menos agradáveis do corpo, há cheiros estranhos, há sons engraçados, há toques ruins, tem pau duro, pau mole, mais ou menos abertura, mais ou menos cansaço e vontade de gozar ou não.

Conversamos bastante, e expliquei para ele o quanto era importante se conhecer e conhecer seu próprio corpo e o quanto tudo tinha sido absolutamente delicioso para mim: a experiência é ótima porque agora ele pode dizer “adoro ser dilatado e algum dia imagino como vai ser gostoso conseguir ser fistado” e não um simples “gosto de fisting”. E depois eu o questionei sobre a vontade de ser submisso, escravo, obediente ou ser um servo mesmo. Expliquei as diferenças e perguntei: e sobre isso? Você se conhece ou acha que a fantasia vai encaixar na realidade?

Já falei sobre responsabilidade neste texto no sentido do Dominador ao utilizar o corpo do submisso. Mas nossa responsabilidade ao nos relacionarmos com qualquer um é conhecer um pouco mais de nós mesmos: senão você pode colocar o outro e a si mesmo em situações ruins ou até mesmo em risco.

Este submisso não fez nada de errado – muito pelo contrário – estava me conhecendo e se conhecendo enquanto estava comigo. E eu também pois foram raras as vezes que eu vi um submisso tão frustrado na minha frente e aprendi (mais uma vez!) que nem sempre tudo é sobre mim: ele tinha a vontade e necessidade dele. Estar com outra pessoa é admitir que as vontades e os desejos dela são tão importantes quanto os teus e isso dá trabalho, é importantíssimo, leva tempo e erros até a gente aprender e infelizmente há um monte de gente que passa a vida sem saber lidar com isso.

Saímos de lá e fomos tomar um café – vários cafés – porque eu queria ver se ele ficaria bem e a companhia dele também era bem agradável.

O comportamento ético, respeito e auto-conhecimento são importantes em todos os nossos relacionamentos, mas aqui fica um pouco mais claro porque, no mundo fetichista e no BDSM, temos que ficar de olho nestes valores. As vontades que queimam por sessões fantasiosas com objetivos irreais podem trazer o silêncio da falta de diálogo, o desrespeito aos limites, as frustrações que se reforçam a cada encontro e a falta de objetivos e do entendimento de si e do outro. Então, deixo aqui algumas reflexões que podem nos ajudar a ter uma vida e relacionamentos fetichistas menos disfuncionais: responda as perguntas abaixo para si mesmo.

● O tesão que sinto por esses fetiches são só fantasias ou eu quero mesmo realizar?
● Eu procuro uma sessão mais leve, mediana ou bem forte?
● Eu quero somente uma sessão ou gostaria de conhecer e permanecer com alguém?
● Quais limites (físicos e psicológicos) meus eu desconheço para as práticas que curto?
● Eu consigo confiar minimamente nesta pessoa com quem vou sair?
● Se eu pedir total sigilo a esta pessoa, estou certo que ela vai me respeitar?
● Eu sei o que é palavra (ou gesto) de segurança e como usar? O outro sabe também?
● Quais controles eu terei se… tudo der errado? Alguém sabe que estou me encontrando com esta pessoa?
● Eu sei diferenciar BDSM de fetiches, taras e fantasias e sei porque isso é importante?
● Para os submissos: eu deixei meus limites bem claros para o Dominador? Eu conheço meus fetiches e os desejos que quero trazer para a realidade? Ele me garantiu que sabe o que está fazendo ou pelo menos já me avisou que também é iniciante? Consigo confiar nele para deixá-lo usar meu corpo para seu prazer?
● Para os Dominadores: eu sei dizer “não sei” quando não souber fazer algo? Eu tenho algum amigo Dominador para perguntar se eu não souber mas quiser fazer? Eu sei quando parar antes de machucar ou chatear o submisso de verdade?
Os detalhes deste encontro delicioso com um iniciante em fisting ficam para outro dia, outra história, outra hora.
E será que eu encontrei mais vezes este lindo e carinhoso submisso? Na verdade não vem ao caso. Mas sei que, assim que ele ler este texto, vai se lembrar das minhas botas, do meu charuto e da minha mão como ontem. Sinta-se beijado. 😉

AUTOR

FABRICIO FREITAS

Fabricio Freitas (CigarMasterSP) é envolvido com a cultura LGBTQIA+ e fetichista há mais de 20 anos.
Participou de vários eventos nacionais e internacionais relacionados ao mundo LGBTQ+, fetichista, leather e BDSM e desenvolveu vários blogs sobre crônicas, informações e divulgação de nossa comunidade.
Organiza eventos e promove ações desde 2005 para a contribuição e a divulgação da cena fetichista brasileira em âmbito nacional e internacional e trabalha com educação, saúde, segurança e sexualidade.
Idealizador e professor do projeto voluntário Arbeitsgruppe de aulas de alemão para membros da comunidade.
Organiza e promove os encontros Cigar Men Brasil para os fetichistas que amam um bom charuto e fumar
É secretário da Aliança Fetiche & Leather Latino-Americana (AFLL) promovendo encontros regulares da comunidade e organização de novos projetos.
É apresentador do concurso Mr. Leather Brasil desde 2017.

Fabricio Freitas – CigarMasterSP
Instagram – @fabriciofreitas.cm
Facebook – https://www.facebook.com/cigar.mastersp.br
E-mail – cigarmastersp@gmail.com

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