Por quase um ano inteiro, me dediquei a estudar a linha cronológica da criação da pornografia e dos contos eróticos, no entanto ainda há muita coisa a ser lida e pesquisada para que eu possa expor qualquer conclusão. Há muitas teses publicadas que elucidam e amarram esses assuntos, mas me falta uma longa caminhada para chegar lá. Hoje, pretendo apresentar uma das histórias eróticas que contribuiu para a nossa cultura: A história d’O!
Como você deve ter lido aqui, eu sou o colunista de sábado e tenho como objetivo apresentar algumas linhas de raciocínio, construções e fatos ao longo da nossa história a fim de enriquecer as bases epistemológicas dos praticantes. Não me posiciono como o portador da razão, muito pelo contrário, apenas um pesquisador que sempre está encontrando coisas novas e adoraria dividi-las com todo mundo.
Intercalando minhas colunas de sábado, também colocarei análises críticas de filmes e livros que influenciaram a nossa cultura. Espero que gostem!
Contextualização:
Geograficamente falando, a Europa Ocidental não é tão grande em extensão. Muitos dos países que a compõem são pequenos em área e cabem em alguns dos estados do nosso Brasil, consequentemente, não havia tantas barreiras entre algumas dessas culturas, sendo possível transitar de um país para o outro de trem em algumas horas como mostra o mapa.
Quando estamos falando de fetiche e prazeres, sempre referenciamos Alemanha, Inglaterra, França, Bélgica e Holanda pela proporção do conteúdo e referência que cada um deles possui, no entanto, é correto afirmar que toda essa área do centro da Europa Ocidental tende a ser bem ‘sexualmente ativa‘.
Então, seria interessante separarmos em dois momentos importantes para o nosso BDSM: o que acontecia nos Estados Unidos (nos anos 20 a 60) e o que acontecia na Europa (no mesmo período). Apesar da pouca troca que tiveram, mesmo ocorrendo simultaneamente, os dois grupos viriam a desembocar na mesma comunidade.
A motivação
Nascido em Nîmes (França) em 1884, Jean Paulhan lutou na guerra e voltou para casa em 1914 e, ao servir, descobriu um patriotismo desigual e essa experiência o encorajou a fazer as anotações que se tornarão sua primeira história publicada, Le Guerrier appliqué, no entanto, sua carreira como escritor ascendeu tanto quanto sua carreira como editor e se tornou importante na editora Gallimard, sendo aquele que aprovava e pressionava todos os escritores.
Foi na editora Gallimard que ele conheceu sua esposa Anne Cécile Desclos, nascida em Rochefort (França) em 1907. Anne era uma importante jornalista que sob o pseudônimo Dominique Aury tornou-se conhecida e respeitada como crítica literária e tradutora.
Como você deve ter observado, Anne e Jean possuíam 20 anos de diferença de idade, mas Anne tinha todo o destaque e brilhantismo em suas críticas e obras a tal modo que cultivava admiração e elogios em todos os pontos. Em 1946, Paulhan convidou-a a ocupar o cargo de editora da Gallimard enquanto ele exercia a diretoria da mesma e foi nestas conversas de casal nos bastidores que surgiu o maldito comentário.
Paulhan nunca escondeu seu fascínio pelo também francês Marquês de Sade e o referenciou inúmeras vezes como o maior escritor de todos os tempos (pelo visto, seu patriotismo nunca o abandonou) e disse em alguma ocasião para Anne que “mulheres não eram capazes de escrever romances eróticos”.
Então, em 1954 é lançado o livro que é considerado um marco na história do BDSM e que mais tarde viria a influenciar muitas das práticas na comunidade, fornecendo vários conceitos que utilizamos até hoje. Trata-se do livro ‘Histoire d’O’ que foi escrito pela francesa Anne sob o pseudônimo de Pauline Réage.
Analisando a obra
Quando lemos o livro, percebemos que a mulher é sempre um objeto dominado. Do ponto de vista feminino, um objeto nascido para ser dominado. Do ponto de vista masculino, um objeto feito para a dominação.
Houve por anos um debate sobre quem estaria por trás do pseudônimo “Pauline Réage” talvez fosse um homem, pois a narrativa sempre foi conduzida por um ponto de vista muito masculina sobre a sexualidade – inclusive a feminina. É como se a autora olhasse a si mesma, e ao jogo erótico, não do ponto de vista dela, e nem mesmo do ponto de vista masculino, mas sim do ponto de vista do que ela imaginava que um homem pensaria, sentiria e esperaria de um livro erótico. Não é erotismo feminino – mas um livro de erotismo falocêntrico escrito por uma mulher.
Quando passo pelas páginas observo que Pauline (ou Anne, para os íntimos) cria um mundo lúdico que qualquer ser humano dominante adoraria fazer parte. A personagem O seria a melhor versão de uma pessoa devota aos seus desejos.
A revelação de que ela o escreveu como uma resposta ao desafio do Jean só veio à tona em 1994 pela revista The New Yorker e esse fato pode ajudar a entender cada vírgula e ponto final dessa história marcante.
Além disso, o livro como um todo elabora elementos interessantes:
O aprendizado: Ninguém nasce sabendo, então todo o dominador precisa aprender com outro dominador mais experiente as melhores formas para conduzir uma prática, da mesma forma que não há como um bottom saber tudo o que deve fazer apenas por ‘ser submisso’.
Esse ensinamento de ambas as partes é importante, então, o personagem René aprende com o Sir. Stephen a ser um dominador enquanto a personagem O é encaminhada para um local no qual aprenderá como se portar, como deverá servir, como uma propriedade deverá se portar perante seu dono.
O querer: Personagens diferentes questionaram a personagem O, se ela gostaria de prosseguir e só continuariam caso ela respondesse afirmativamente.
Limites: Por mais que a palavra de segurança só venha a ser atribuída muito tempo depois (1971 e/ou 1974), mas a percepção de que o dominante ‘pode fazer o que quiser com você até a página dois’ é bem presente nessa obra de 1954. O Sir Stephen comanda um clã onde todas as posses usam um anel circular. Qualquer um dos membros poderá fazer o que desejar com os outros integrantes desse clã enquanto estiverem usando o anel. A partir do momento que o anel é removido a condição se encerra. Essa ciência será mencionada algumas vezes ao longo do livro e o filme fará uma grande referência, inclusive visual.
O respeito e irmandades: Sir Stephen e seu clã não consideram as mulheres inferiores ou ‘naturalmente submissas’, muito pelo contrário, fica claro que todos os integrantes do clã assumem posições de acordo com suas vontades e prazeres, pois ao se deparar com o clã da Anne-Marie (chamado Samois), ele não a desrespeita. Stephen pede para que Anne-Marie faça algo na personagem O e ela aceita com muito respeito entre dois dominantes.
Enquanto a estadia da personagem O nesse espaço caminha, mostra que as posses naquele local apenas respondem a Anne-Marie e ela é a figura central daquele clã. Também deixa claro que elas (as posses da Anne-Marie) seguiram outro treinamento, portanto aquela ‘escola de submissão’ pertence apenas ao clã do Stephen. Inclusive, as posses da Anne-Marie usam outros objetos.
Submissos não são fracos: Para se posicionar e dizer o que quer demanda muita coragem, não é mesmo? Você pode dizer o que quiser da personagem O, mas jamais dirá que ela é frágil por saber exatamente o que quer. Infelizmente, trata-se de um erro comum na comunidade BDSM até os dias de hoje. A personagem O não abandona sua vida para viver sua submissão, muito pelo contrário, continua trabalhando e tendo sua ascensão profissional ao longo da obra mostrando sua devoção e entrega em sua casa e isso não afetando sua vida profissional de forma alguma.
A vida copia a arte
Embora muitos leigos possam se escandalizar com tudo que é descrito em História d’O, nessa obra são apresentadas definições muito importantes para quem joga no universo BDSMista, como os apresentados até agora. Depois da publicação muitas pessoas se identificaram e a comunidade só fez aumentar. Porém, até aqui, a obra de Pauline estava muito restrita ao contexto europeu. Então, em 1975 o cineasta francês Just Jaeckin adaptou a obra para o cinema difundindo-a, o que a fez ter um grande alcance nos Estados Unidos.
Em uma parte do livro, vemos que a personagem O é levada para um lugar chamado Samois, onde viviam outras mulheres que respondiam à Anne-Marie (matriarca) e que compunham um clã. Esse nome “Samois” foi utilizado pelo primeiro grupo lésbico sadomasoquista dos Estados Unidos.
A Samois nasceu a partir de outro grupo chamado Cardea, que era um grupo de discussão de mulheres dentro da Society of Janus (1974 até hoje). Cardea existiu de 1977 a 1978, mas um núcleo de membros lésbicas, incluindo Pat Califia e Gayle Rubin, deram vida a Samois em 13 de junho de 1978, como um grupo BDSM exclusivamente lésbico. A SAMOIS ficou na ativa até 1983 e também se tornou uma editora publicando dois livros, o primeiro e mais famoso Coming to Power: writtings and graphics on lesbian S/M.
Além do livro de 1954 e o filme de 1975, a obra foi adaptada em quase todos os formatos possíveis, virando história em quadrinhos pelo Guido Crepax e até uma minissérie brasileira!
Conclusão
Muitas coisas influenciam o nosso atual BDSM. Esse movimento, cultura ou subcultura teve diversos agentes para a sua construção e divulgação, cada um desses elementos influenciou de tal forma que aquele que entra no BDSM por uma dessas portas de entrada tem uma percepção do todo completamente influenciada.
Literariamente falando, Histoire d’O foi o primeiro romance que formou o que vivemos hoje, pois as obras do Masoch ou do Sade não tratam nem de perto das nossas práticas. Colocando em uma ordem cronológica, além do movimento Leather dar o rosto para os bares e baladas estadunidenses, a obra e o filme trouxeram contextos novos enquanto os grupos vindouros organizaram as práticas e se inspiraram tanto na literatura quanto no contexto urbano vivido sigilosamente.
É possível fazermos uma análise de ‘eras’ colocando cada grande acontecimento como um marco zero e um divisor de águas, influenciando os acontecimentos posteriores, por exemplo: anos depois tivemos a ‘era Madonna‘, em 1992, com o álbum Erotica e o livro SEX que também popularizou o universo erótico-SM, introduzindo novos conceitos para tudo aquilo que já conhecemos.
Eu sei que pode gerar um gosto amargo para você leitor, mas, atualmente, estamos vivendo a ‘era 50 tons de cinza‘, onde novos conceitos foram apresentados e instaurados na comunidade e ainda estamos nos adaptando a eles. Pelo número de pessoas que entrou no BDSM esperando encontrar algo próximo do proposto pela E. L. James, a comunidade teve que se adaptar, seja para falar que não somos parecidos com o 50 tons, ou para integrar os novatos e apresentar o BDSM a partir dessa ótica. De qualquer modo, essa obra também nos influencia, porque partimos do ponto comum do 50 tons para apresentar o BDSM, da mesma forma que aconteceu em outros momentos.
No filme The Pet (2006), o personagem Philip menciona ter assistido Story of O e querer praticar algo parecido. A mesma referência se passa em outros filmes do Roman Polanski.
Eu sou suspeito para falar, porque eu adoro a Histoire d’O e espero ter dividido com vocês minha profunda admiração e respeito por esse importante marco histórico e finalizo agradecendo a Anne Cécile Desclos que mostrou para toda uma geração e comunidade que sim, mulheres são capazes de escrever romances eróticos!
AUTOR
Mestre Sadic
Estudo o universo fetichista desde 2010 e iniciei as práticas em 2013. Hoje dou palestras sobre o fetiche, tiro dúvidas e mentoro novatos. Tenho como objetivo propagar conhecimento e não me aproveitar dele.
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APRENDENDO BDSM E FETICHES COM O MESTRE SADIC