É curioso pensar que aquilo que comumente chamamos de Shibari hoje, teve sua origem em uma técnica japonesa usada para capturar e imobilizar oponentes (chamada Hojojutso). O Hojojutso era usado não somente para aprisionar mas também para torturar e humilhar adversários.
Contraditoriamente no Shibari/Kinbaku não existem mais oponentes e sim parceiros, temos aqui uma distinção gigantesca no propósito entre essa atividade e a sua origem.
A pergunta de ouro é: como uma técnica de aprisionamento e tortura entre oponentes se transformou numa prática de conexão e prazer entre parceiros?
Pra mim a única força de sublimação capaz de transpor um abismo imenso entre dois propósitos tão opostos é ela… a ARTE!
Segue o fio comigo, pois neste texto vamos ver como a Arte e outros fatores importantes fazem parte da história do Shibari!
Shibari e Arte
Apesar de ter as raízes de sua inspiração no Hojojutso, o Shibari como conhecemos hoje teve o marco do seu nascimento, na década de 1920, com o trabalho do artista Japonês Seiu Ito. Através de suas ilustrações com cenas de mulheres amarradas em contextos mais eróticos, ele ressignificou o Hojojutso e passou a influenciar as gerações de praticantes que vieram depois dele.
Essa não foi a única influência da arte na história do Shibari, na década de 1950, uma revista chamada Kitan Club passou a publicar imagens de Bondage e SM, artigos e tutoriais sobre como fazer algumas amarrações.
Na década de 1960 o Pink Cinema (cinema erótico Japonês) teve uma explosão e o Shibari era presença marcante nessas produções. Esses filmes tiveram um papel crucial na difusão do Shibari, para além do Japão, fomentando um processo de influência muito grande nas práticas e técnicas de Bondage no Ocidente.
Isso tudo nos mostra que é impossível separar a história do Shibari da Arte e mesmo a prática do Shibari carrega em si um caráter artístico muito forte devido à sua estética elaborada.
Shibari e Erotismo
Depois da segunda guerra mundial a economia do Japão estava devastada e muitas pessoas passaram a fazer performances Kink com as cordas para sobreviver. Já nas décadas de 1970 e 1980, com a retomada da economia Japonesa, uma cultura de bares temáticos de Bondage se estabeleceu onde as pessoas do staff faziam performances de Kinbaku/Shibari para entreter os clientes e estimular o consumo.
Esse cenário estimulou também um mercado de Pro Tops, homens e mulheres, que eram vistos como performers profissionais e geralmente eram contratados como estrelas dos bares para atrair mais clientes.
Em paralelo à essa cena mais profissional dos bares, haviam as festas particulares e o clubes de Swing Kink onde as coisas eram mais fluidas e espontâneas, onde as pessoas amarravam e eram amarradas sem as formalidades do ambiente profissional e infelizmente também sem muitas ferramentas de comunicação e redução de danos como a negociação prévia, estabelecimento de limites, safewords, que foram conceitos amplamente disseminados na cultura BDSM e do bondage Estadunidenses.
Por essas e outras questões, o Shibari não é visto no Japão como um bem cultural tão nobre quanto a Cerimônia do Chá por exemplo, ele tem na cultura japonesa o mesmo lugar do Grafitti, da Tatuagem, do Hip-Hop…
Outra conclusão é que, assim como é impossível separar a história do Shibari da arte, também é impossível separar sua história do erotismo.
Shibari x Kinbaku
Se olharmos para a tradução da palavra Shibari, ela significa literalmente amarrar. Na cultura japonesa o ato de amarrar é usado simbolicamente em vários contextos, seja nas cordas que prendem um kimono, seja nos tipos de laços que embalam um presente… para cada tipo de nó existe um significado dentro destes contextos. Trazendo essa analogia para a nossa cultura, existem diversos tipos de nós no universo da navegação, da escalada, da pesca por exemplo…
Em ambos os casos, em português, podemos usar uma palavra em comum para tudo isso, amarração ou nós, seria a mesma coisa com a palavra Shibari no japonês.
Porém existe uma palavra no idioma japonês usada em um contexto mais específico, ligado à troca existente entre duas pessoas através das cordas: Kinbaku.
Existem duas vertentes em relação ao uso das palavras Shibari e Kinbaku, uma delas diz que Shibari é uma palavra genérica que fala de qualquer tipo de uso de nós e amarrações e
e a outra diz que Shibari pode sim ser usada como similar a Kinbaku para designar o uso específico das cordas num contexto mais erótico ligado ao bondage oriental.
Fica aqui um ponto em que esse texto não traz uma conclusão, pois eu não tenho bagagem suficiente para afirmar algo com precisão, porém em algumas leituras eu encontrei a citação do Osada Steve, que é uma das maiores referências da atualidade no assunto e ele diz:
“Shibari simplesmente descreve aspectos técnicos e estéticos da tradição Japonesa de amarrar. São técnicas “vazias” que poderiam teoricamente ser aplicadas em uma boneca de tamanho real. Uma vez que a essência do Bondage Japonês é alcançar uma troca emocional entre duas pessoas através das amarrações, isso então é chamado de Kinbaku” Osada Steve (tradução livre do inglês feita por mim)
Pensando por exemplo que Shibari pode ser feito em objetos ou em pessoas com fins puramente estéticos, faz muito sentido essa diferenciação entre Shibari e Kinbaku. Mas aqui no Brasil, e no ocidente como um todo, temos a tendência de usar a palavra Shibari para designar as duas coisas.
E afinal o que é Shibari pra mim?
Definitivamente Shibari é uma Arte onde as possibilidades estéticas das cordas me permitem explorar formas que dialogam com o corpo e com os objetos de forma orgânica, eu gosto muito de reproduzir estruturas complexas e padrões estéticos bem elaborados, mas o que me satisfaz é começar uma amarração sem fazer ideia de como vou terminar e simplesmente fluir e me surpreender com o resultado final.
Além da Arte, o Shibari é pra mim uma linguagem fascinante onde é possível me comunicar sem palavras com outra pessoa através do corpo e das cordas.
É um privilégio e um prazer sem tamanho iniciar uma sessão com uma pessoa, onde cada um está em vibrações diferentes, e constatar que ao final da sessão ambos estão compartilhando as mesmas emoções e numa sintonia muito afinada.
Esse poder que as cordas tem, de gerar uma conexão, me encanta e me faz querer me conhecer cada vez mais como Rigger e poder proporcionar experiências mais verdadeiras, intensas e seguras para as pessoas com quem eu me conecto.
Até logo e obrigado!
Esse breve texto é apenas uma introdução dos conteúdos voltados pro Shibari, Arte e Dominação aqui nessa coluna… A cada 15 dias a gente se reencontra para voltar a falar desses temas!
Te agradeço por ter chegado até aqui na leitura e te convido a tecer esse novo espaço comigo, participando nos comentários e enviando os textos para as pessoas que possam curtir.
Referências:
JAPANESE ROPE BONDAGE HISTORY AND TRADITION
What is shibari? History of Shibari A Brief History of Japanese Rope Bondage
A Brief History of Japanese Rope Bondage
A Brief History of Rope Bondage
The History & Myths of Japanese Bondage
The King of Kinbaku – The Works of Japanese bondage artist Seiu Ito
AUTOR
QUÍRON
Quíron – Rigger, Top, sádico e artista. No universo dos fetiches desde 2016, procura misturar Fetiche e Arte com suas cenas públicas, fotografias, textos e poemas.
INSTAGRAM: @quiron_shibari
Portfólio de fotos BDSM: https://domquiron.myportfolio.com/