Olá amores, tudo bem? Hoje vamos trazer a última parte da nossa série sobre “o jogo lúdico do BDSM”. E deixei um dos pontos talvez mais importantes e, ao mesmo tempo, mais polêmicos para o final: regras do jogo. Afinal, como elas acontecem? E o que acontece com quem não se adéqua a elas.
Esse é um assunto complexo, com muitas nuances. Aqui continuamos (e encerramos) o ciclo com Johan Huizinga. Esperamos que tenham gostado! Você pode conferir todos os textos da série aqui!
Jogo e regras
Há um princípio básico de qualquer jogo: ele precisa ser formado por regras. É isso que permite a todos atuarem de forma sinergética e seguir as características do jogo. E, ao mesmo tempo, que não ocorra subjulgação ou destruição do espaço lúdico e dos demais durante as práticas.
Mais uma vez, trago o exemplo que Huizinga nos fala sobre a guerra. Dentro das características do jogo e sem gerar a obliteração dos demais, a guerra é um jogo. Claro, que atualmente, nenhuma praticada é, de fato, lúdica. Mas isso já aconteceu em nossa história. Contudo, a partir do momento em que há essa subversão dos critérios lúdicos, acaba o espaço mágico em que ele ocorre.
Ou seja, uma atividade com o mesmo nome pode ser um jogo lúdico ou não. O que vai garantir a ludicidade são as características que listamos logo no primeiro artigo dessa série.
Dentro do BDSM, podemos fazer a mesma analogia: condutas que descaracterizem as regras do jogo quebram o espaço lúdico e o jogo termina. Você pode dar o nome de BDSM, só… Não será o “jogo erótico de troca de poder “.
Mas, que fique claro: eu chamar “batata” de “morango” não vai transformar a fruta em tubérculo. Da mesma forma, jogar fora das regras do jogo não vai tornar aquilo, de fato, um jogo, mesmo que você diga que é.
E torna-se muito importante diferenciar condutas que sinalizam alerta (que hoje chamamos de red flags) daqueles que, de fato, “desmancham o mundo ilusório ‘em jogo'”. E aqui, novamente, Huizinga nos dá a chave para entendermos como lidar.
Ele diferencia os jogadores que quebram as regras em dois: o desmancha-prazeres e o desonesto.
“O jogador que desrespeita ou ignora as regras é um ‘desmancha-prazeres’. Esse, porém, difere do jogador desonesto, do trapaceiro, já que o último finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o círculo mágico” (p. 13-14).
Normalmente, segundo Huizinga, o primeiro, quando reconhecido, destrói o mundo ilusório e, portanto, é expulso daquela comunidade.
Cadê o “Livro do jogador” do BDSM?
Mas afinal, aí sempre vem a pergunta: “mas como definir isso, se não há um livro de regras sobre o BDSM?”
Sim, eu entendo, talvez você olhe para o BDSM com uma aproximação muito maior, por exemplo, com o role play dotado de um livro de regras, como o RPG de mesa. Apesar de termos diversos sistemas diferentes (Storyteller, 3D&T, D&D, Gurps, Call of Cthullu, entre outros), eles dialogam entre si. Um jogador consegue transitar entre os sistemas com uma certa fluidez, porque há bases em comum entre todas elas, que permitem a qualquer jogador a reconhecer aquilo como RPG.
Mas ok, se no RPG temos livros de regras para nortear a conduta do mestre e dos jogadores, outros jogos não possuem, estruturados, os seus princípios e regras. Mas cada jogador, dentro de uma comunidade, consegue reconhecer o grupo de regras, porque dentro daquela cultura, daquela comunidade, as informações são passadas de pessoa para pessoa e isso permite a todos reconhecerem os princípios daquele jogo.
Por exemplo, não existe um livro ensinando como jogar amarelinha. Você pode até encontrar alguns manuais infantis (como o saudoso Manual de Brincadeiras da Mônica), mas nunca foi preciso isso para que as crianças conseguissem seguir as regras do jogo.
Por exemplo, o jogo da amarelinha pode ser jogado de muitos jeitos. Você pode definir:
• se vai jogar uma pedrinha em um número aleatório ou se deve seguir a ordem crescente numérica;
• se deve pular todas as casas com um pé só ou se nas casas geminadas pode colocar os dois pés no chão;
• se você pode pausar quando chegar no “céu” ou se deve virar nas últimas casas e voltar.
As regras pormenorizadas vão mudar, porque como é transmissão oral e geracional, há mudanças nas formas como isso é ensinado. Também, as crianças gostam de explorar a criatividade. Portanto, é comum que tenhamos diferenças sutis entre práticas e que, ao conhecer crianças que joguem com esses pormenores de outras formas, elas se permitam a essa experimentação.
Contudo, convenhamos, há características que nos permitem olhar para qualquer criança brincando e falar: “ela está jogando amarelinha”. Não importa se esses pormenores são diferentes ou não, mas há bases comuns que caracterizam esse jogo:
• o desenho traçado no chão (que pode variar, mas há a presença do desenho definindo o espaço da brincadeira);
• há uma limitação explícita rodada a rodada (que é a casa que não pode ser pisada): o uso de uma pedrinha para delimitar qual é a casa que não pode ser pisada ou a definição de uma ordem para seguir (por exemplo, que a cada rodada, a casa definida seja escolhida seguindo a ordem crescente);
• o jogo é definido pelo saltitar das crianças entre as casas, ou seja, os pés são utilizados como elemento condutor do jogo;
• caso a pessoa não consiga não pisar na casa limitada, ela perde a rodada;
• vence aquele que conseguir alcançar o objetivo final do jogo primeiramente, ou eliminar todos os seus concorrentes.
Isso são elementos constituidores do jogo, suas regras e premissas básicas. É isso que define “o jogo da amarelinha” e não precisa estar em um livro de normas. É o que a cultura e, consequentemente, a comunidade como um todo, traz como definidor daquele jogo e os demais pertencentes a validam ao reconhecer que aqueles traços é o “jogo da amarelinha”, e não, por exemplo, “chicotinho queimado”.
Entender esses pontos nos permite compreender como a formação cultural de meio e o senso de comunidade é importante. O que valida o jogo como tal? Há, além das características que falamos, o reconhecimento daquela comunidade sobre o jogo. E isso é social, não é individual. Você pode emular um jogo? Pode. Será um simulacro, não o jogo real.
AUTORA
HACKING SEX
Nascido de uma ideia de mudar o sistema por dentro, aproveitando as brechas de vulnerabilidade para repensarmos e fortalecermos as concepções sobre (a)sexualidade(s), em constante (des)(re)construção, feito de forma coletiva. Construindo uma comunidade com o fortalecimento de todos os membros, abrindo espaços para trocas colaborativas de ideias, para que todos possamos crescer juntos no processo.
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Uma resposta
Regras são importantes, e podem ser quebradas desde que de comum acordo entre todos os participantes. Mas, dependendo das mudanças, a atividade se descaracteriza. Nada contra, somos livres, mas não se pode chamar de bolo uma pamonha…