Olá amores, sejam bem-vindos a minha primeira participação como colunista aqui! Espero que possamos conversar bastante sobre os mais diferentes temas e possamos criar um entendimento coletivo sobre vários assuntos que permeiam diretamente e indiretamente o BDSM. Vamos juntos?
Uma das definições mais recorrentes atualmente que vemos no BDSM é trazida na frase “jogo erótico de troca de poder”.
Aqui temos três variáveis:
– Jogo;
– Erótico;
– Troca de poder.
Muitas pessoas não concordam que BDSM seja erótico, principalmente, quando associam o conceito de “erótico” estritamente com “sexo” e, ainda, com “sexo dentro da visão eurocêntrica, baseada em princípios do movimento puritanista inglês, que está intimamente associado com fins de reprodução e, consequentemente, estritamente ao estímulo de genitálias”. Podemos conversar sobre isso depois.
Muitas pessoas não concordam que BDSM envolva necessariamente troca de poder. Para chegarmos aqui, precisamos de ter um entendimento consensual sobre “o que é poder” (e esse já é um tema espinhoso para a filosofia e para a política, acredite!), para que possamos falar sobre “troca de poder”.
Mas e sobre “jogo”? Esse parece ser um ponto mais apaziguado, parece. Ainda que muitas pessoas falem pouco sobre o BDSM ser um jogo (muitas vezes, por parecer que há um “ar infantilizado” ao mencionar assim, talvez?), é esse conceito que permite a gente a entender o que norteia os princípios do meio.
Vamos juntos entender o “jogo lúdico” do BDSM?
Mas afinal, o que é “jogo”?
Bom, para gente entender o que é o “jogo”, vou recorrer a um dos autores mais conceituados e citados sobre o tema: Johan Huizinga, com a sua publicação Homo Ludens. Ele é aquele livro que é quase uma obrigatoriedade para quem quer estudar sobre o tema (e recomendo muito a leitura, viu? O livro está disponível em português). Então muitos conceitos e discussões aqui foram retirados do livro, tá?
O jogo é elemento fundamental da cultura. Não está restrito aos humanos (animais também jogam), e também antecede à formação da cultura. Ela tem uma função significante, ou seja, ela sempre encerra um determinado sentido. Se ainda não ficou claro, sempre há algo “em jogo” no lúdico, que vai para além das necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Ou seja, sempre tem algo que está para além daquele jogo.
Então assim, no “jogo lúdico do BDSM”, as práticas em si não se encerram nelas mesmas. Tem algo para além daquela dinâmica. E esse “algo a mais” não é um consenso. Não é apenas um elemento biológico, ou estamos reduzindo o jogo. De novo, o jogo tem um elemento cultural, uma função social, relacional entre os envolvidos. Não há uma interpretação lógica aparente sobre o que é esse “algo a mais”, que traz o divertimento do jogo.
Para você ter noção, as grandes atividades arquetípicas das sociedades humanas são baseadas em elementos de jogos. Por exemplo, é possível encontrar elementos lúdicos em muitas guerras (é claro que Huizinga diz, por exemplo, que há regras para considerar a guerra como algo lúdico. Ela não pode ter ataque de surpresa, emboscada, massacre total ou elementos que levem a destruição, subjulgação ou dominação total).
Mas afinal, como guerra pode ser lúdico, se ela não é divertida? Pois é, meus amores. Aqui temos um ponto importante de falar: o jogo não é oposto a seriedade. Por isso, quando falamos que o BDSM é lúdico e muitas pessoas entortam a boca, como se estivéssemos reduzindo isso a uma “brincadeira” (e se fosse uma brincadeira, qual o problema, não é mesmo? Afinal, não seria demérito). Mas uma coisa não exclui a outra.
Quais as características do jogo?
Aqui vou introduzir algumas das características que o Huizinga traz, ainda inicialmente, mas vamos conversar muito sobre cada uma delas se relaciona com o “jogo lúdico do BDSM”. Mas só por isso, já conseguimos entender as relações entre ela e aquilo que temos como princípios quando jogamos no meio.
• O jogo é uma atividade voluntária e consensual. Se um dos participantes está sujeito a ordens, ou coagido para jogar, é uma imitação forçada do jogo. A falta de liberdade é uma forma de afastamento definitivo do lúdico;
• Para os adultos, segundo Huizinga, o jogo é uma atividade que pode ser dispensada ou algo supérfluo. Ou seja, não está dentro das atividades obrigatórias para sobrevivência do indivíduo. Contudo, “só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade” (aqui vamos discutir essa problemática na próxima coluna!);
• O jogo pode ser adiado ou suspenso;
• Ele não pode ser imposto por necessidade física ou dever moral;
• Nunca constitui tarefa, sendo feita no tempo livre (por isso, não compromete outras atividades como trabalho, descanso, estudos, tempo com família, entre outros. Aqui a palavra “tarefa” esbarra em muitas questões do BDSM, mas vamos conversar disso depois!);
• O jogo não é vida “corrente”, nem “vida real”. É uma “evasão da vida real” para um mundo com orientações próprias. Um exemplo que Huizinga dá é que toda criança sabe quando está só “fazendo de conta” ou está “só brincando”;
• O jogo lúdico atua como um interlúdio em nossa vida cotidiana;
• Ele tem um caráter para além da satisfação individual de necessidades biológicas;
• Ele começa e termina em momentos determinados previamente, e enquanto ele ocorre, tudo é movimento;
• Ele tem capacidade de repetição;
• Todo jogo existe no interior de um campo previamente delimitado;
• Jogo cria ordem e é ordem;
• A menor desobediência às regras do jogo estraga a perfeição que o jogo gera momentaneamente;
• Há sempre um elemento de tensão no jogo (seja pela incerteza ou acaso do que vai acontecer);
• Há sempre um esforço que o jogo vá até seu “desenlace”. O jogador quer ter sucesso à custa do seu próprio esforço.
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Se você percebeu, todos os pontos que estão aí dialogam diretamente com o BDSM, não é mesmo? Só que podemos aprofundar bastante em cada um desses pontos. E faremos isso nas próximas colunas. 🙂
E entender o que está “em jogo” (ba-dun-tss) ao encarar o BDSM como jogo lúdico permite entender que isso não tira a legitimidade do meio, ou o faz encarar como algo com “menos valor”. Pelo contrário, permite unir leveza, responsabilidade e seriedade a algo tão prazeroso, não é mesmo?
E você? Permite-se encarar o BDSM dessa forma? Ou te incomoda essa percepção? Vamos conversar sobre isso?
AUTORA
HACKING SEX
Nascido de uma ideia de mudar o sistema por dentro, aproveitando as brechas de vulnerabilidade para repensarmos e fortalecermos as concepções sobre (a)sexualidade(s), em constante (des)(re)construção, feito de forma coletiva. Construindo uma comunidade com o fortalecimento de todos os membros, abrindo espaços para trocas colaborativas de ideias, para que todos possamos crescer juntos no processo.
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