Neil Gaiman e o não BDSM
Por Renan Botelho, Mestre Cruel.
Antes de começarmos gostaria de deixar uma mensagem, este texto foi escrito em 18 de janeiro de 2025, tudo que nele consta tem como material o que foi divulgado na imprensa até essa data, se no futuro houver novas evidências, tanto de acusação quanto da defesa que culpem ou inocentem Neil Gaiman, deve-se levar em consideração a data de hoje como base para entender o contexto deste artigo. Como um defensor da justiça, não serei eu quem acusará Gaiman de nada e acredito que ele tem todo o direito de se defender das acusações e, até o fim dos prováveis julgamentos tudo que for narrado aqui tem como base a palavra SUPOSTAMENTE.
NEIL GAIMAN
Neil Gaiman é talvez um dos autores mais importantes da sua geração, autor de obras clássicas da literatura contemporânea como Coraline e Sandman, mas, em julho de 2024 o podcast “Master” da Tortoise Media, trouxe à tona relatos de mulheres que alegam terem sido vítimas de abuso sexual por parte de Gaiman, depois, no dia 13 de Janeiro de 2025, a revista Volture, integrada ao The New York Times, trouxe uma série de relatos de várias mulheres que o acusam do mesmo, com depoimentos fortes que merecem um alerta de gatilho à você que pode ser sensível para esse assunto.
Até então, quando as denúncias apareceram, pensei que seria mais um caso de abusos sexuais envolvendo poderosos do meio do show business, mais um babaca que seria exposto, como tantos foram no movimento do “Me Too”, mas, após as denúncias da Volture, Gaiman veio a público dizer que, jamais praticou sexo não consensual e que praticar BDSM não é crime.
Alegar ser um praticante de BDSM tem sido uma ação comum de abusadores que, para além do estupro, fazem uso de violência física e psicológica, e com isso, me dediquei algum tempo lidando com o estomago revirado para que pudesse ler os relatos das mulheres vítimas de Gaiman.
E aqui cabe mais dois Alertas, o primeiro é informar que o texto ficará mais gráfico com fala das vítimas e o segundo é que todos tem direito a um julgamento justo e isento, não caberá a mim, decidir se Gaiman é culpado ou não, o que farei é apontar as situações de abuso em que Gaiman diz serem praticas do BDSM e que não são por natureza.
Scarlett Pavlovich tinha 22 anos na época do suposto abuso, mas a história dela com a família de Gaiman começa um ano e meio antes, ela era uma estudante de teatro quando foi assistir a uma performance de Amanda Palmer, esposa de Gaiman na época, Pavlovich era fascinada por Palmer e trabalhava em uma perfumaria quando viu Palmer passar na rua e correu para abordála, conversaram e Palmer pediu seu contato, surpreendentemente, mais tarde naquele dia, Palmer enviou uma mensagem a Pavlovitch e as duas começaram uma amizade, com o tempo Pavilovich tornou-se uma espécie de assistente “as vezes paga”, ajudando a “amiga” em tarefas, como organizar arquivos, fazer pesquisas ou até mesmo cuidar do filho dela, Pavlovich admite que tinha interesse em Palmer, em Novembro de 2020 ela foi contratada pela primeira vez para ser babá do filho com Gaiman, a situação repetiu-se por outras vezes, até que em 1º de fevereiro de 2022, Palmer a contratou para passar um fim de semana como babá, porém Gaiman estaria presente na casa, Pavlovich afirma que nunca havia conhecido Gaiman, pois o casamento deles havia acabado em Março 2020, e Gaiman havia saído da Nova Zelândia e com as regras rígidas do Covid não havia conseguido retornar ao país ainda, Gaiman estava morando em uma casa próxima a casa de Palmer.
Segundo ela, naquele dia 4 de fevereiro, Pavlovitch estava brincando com o filho de Gaiman na casa dele, enquanto Palmer não retornava, foi quando Pavlovitch conheceu pela primeira vez Gaiman, que até então estava trancado no escritório trabalhando, ele desceu até a cozinha, pegou um figo e ofereceu a ela, por volta das 20:00, Gaiman a convidou para uma pizza, serviu a ela uma taça de vinho rosé, seguida de outras, ele, tomou apenas água, após lavar a louça, Gaiman ofereceu a ela de tomar um banho na banheira do jardim, ela educadamente negou, mas ele insistiu, disse que precisava relaxar e ele teria de fazer algumas ligações. Ela aceitou e enquanto desfrutava do banho, nua, assustou-se a ouvir os passos de Gaiman nas pedras, quando ela notou, cobriu seu corpo com os braços e pernas e, só então viu que Gaiman estava nu, ele acendeu algumas velas de citronela e simplesmente entrou na banheira, eles conversaram sobre assuntos aleatórios como a agenda de Palmer, e a escola de seu filho, quando então ele disse para ela esticar as pernas e relaxar, ela disse não e disse que não se sentia confortável com seu corpo, ele disse “relaxa, sou só eu, estamos apenas conversando”, ela não se moveu e ele disse “não estrague o momento”, ela então sentindo um súbito terror obedeceu.
Gaiman então ordenou ela que sentasse em seu colo, ela explicou que era gay, que nunca havia tido sexo, e que havia sido abusada quando tinha 15 anos por um homem de 45.
Pavlovitch narra que após essa conversa, Gaiman enfiou o dedo em seu anus e tentou introduzir seu pênis lá, ela disse Não, depois ele tentou esfregar seu pênis entre seus seios e ela disse não, ele então perguntou se poderia gozar em sua cara, ela disse não, mas ele o fez mesmo assim, ao final, ele disse “Me chame de Mestre e eu vou”, “seja uma boa garota. Você é uma boa menininha”.
Pavlovitch mergulhou na banheira para lavar a porra em sua cara, quando emergiu da água, Gaiman sorriu e disse “Amanda (Palmer sua ex-mulher e “amiga” de Pavlovitch) me disse que eu jamais conseguiria ter você” “assim que eu ouvi isso, eu soube que teria que te ter” e lamentou-se “Desejaria estar no passado onde nós dois poderíamos foder você”.
Procurada pela New York Magazine, Palmer declarou apenas que estava consternada com as alegações mas que nesse momento para proteger seu filho, não falaria do assunto.
Filho esse que na época tinha 5 anos, estava presente na casa.
Em outra ocasião, Gaiman a agrediu com um cinto e tentou penetrá-la pelo anus sem lubrificação, após não conseguir, ele foi até a cozinha e voltou com um pote de manteiga, ao final ele a obrigou a limpar “seu Mestre” e a chamou de “minha escrava” e com isso ela teve de lamber as próprias fezes.
Importante citar que o relato de Pavlovitch só surgiu depois, uma vez que na época, ela procurou as autoridades e assinou um acordo de confidencialidade onde Gaiman pagou 9.200 dólares por nove meses para livra-se da acusação de assédio.
O relato da penetração com manteiga, que nada mais é do que uma tentativa de Gaiman de ser um Marlon Brandon em “O último tango em Paris”, cena essa aliás em que assistimos o abuso real da atriz Maria Schneider por parte do diretor Bernardo Bertolucci e de Brandon, demostra que, mesmo sob a suposta consensualidade prévia, o abuso ocorre a partir do momento que ela diz NÃO.
Gaiman, após a estrondosa publicação da Volture, lançou em seu site um artigo intitulado, em tradução livre, “Quebrando o silêncio” em que afirma que reconhece alguns relatos de forma parcial e outros não reconhece de forma alguma, diz ainda que revisitou a troca de mensagens que teve com as supostas vítimas e que nelas nada mais há do que “duas pessoas desfrutando de relações sexuais totalmente consensuais e querendo se ver novamente”.
Infelizmente para nós, Gaiman não diz o que para ele é “parcialmente verdade” e o que é “Mentira”, mas se há alguma verdade no relato, ele por si só já é em sua totalidade algo que, definitivamente não é BDSM.
É fato também que uma revista que está vinculada ao The New York Times tem uma credibilidade a zelar e, não teria postado esses relatos de forma leviana e sem acesso as provas, lembre-se Gaiman, uma troca de mensagens necessita de (ao menos) duas pessoas.
Gaiman (obviamente) nega as acusações de abuso e diz que tudo foi consensual, façamos um exercício de acreditar nas palavras de Gaiman e acreditar que Pavlovich de fato sabia e consentia com o jogo de D/s em que ele afirma ter ocorrido.
O problema dessa alegação é que ela é abusiva desde o princípio, é que Pavlovich era subordinada (e não submissa) de Gaiman, somente essa relação de poder, que não é uma relação erótica, já invalida qualquer tipo de consentimento, Pavlovich era uma jovem que nutria um amor platônico por Palmer, além de ser uma imigrante, universitária com problemas financeiros e que vivia de “bicos”, a oportunidade de ser babá de Palmer e Gaiman, era uma chance de estabilizar-se economicamente.
Ou seja, o consentimento é colocado em dúvida, por premissa, pessoas em vulnerabilidade, seja elas de saúde, mental ou financeira, não podem consentir, pois a sanidade está em risco, a troca financeira não ocorreu de forma inversa “patrão submisso ao empregado”, nem era um “role play” previamente combinado, nem era uma D/s em TPE ou mesmo PPE, pelos relatos das vítimas nenhuma delas se quer sabia o que era BDSM, por isso me soa muito estranho que Gaiman utilize do BDSM como desculpa para o que, supostamente, fez.
Na verdade não soa estranho, infelizmente o BDSM ainda é desconhecido por boa parte da opinião pública e outra parte, a considera uma depravação moral. Usar o BDSM como desculpa para os abusos tem sentido quando você fala sobre as massas.
O desconhecimento das nossas regras, dos nossos valores, da nossa exigência e respeito com a Consensualidade, a Segurança, a Sanidade, os Riscos, são ignorados por aqueles que não querem e não irão entender que o que nós fazemos não é, nem nunca será abuso.
Brenda (um pseudônimo), conheceu Gaiman na fila de autógrafos de Sandman, nos anos 90, ela narra que trabalhava na organização do evento e após a sessão de autógrafos, houve um jantar com quem trabalhou nesse evento, Gaiman sentou-se ao lado dela, “Todos queriam ficar próximos a ele, mas ele não tirava os olhos de mim” ela diz.
Alguns anos depois, Brenda viajou à Chicago para a “World Horror Convention”, onde Gaiman receberia um prêmio por “American God”, a noite seguinte a premiação ela e Gaiman foram para a cama, porém assim que eles começaram a transar, toda cordialidade, todo deslumbre que ela nutria por ele desapareceu, “ele parecia ter um script”, “Queria que eu o chamasse de Mestre” ela diz ainda que ele a fez prometer sua alma. Para ela, era como se ele estivesse cumprindo etapas de um ritual.
Esses foram os dois relatos que o podcast lançou em Julho passado, após isso, outras mulheres acusaram Gaiman de assédio, coerção e abuso, os repórteres da Volture, de onde eu retirei essas narrativas, Paul Galizia e Rachel Johnson, ouviram outros relatos de outra mulheres, além de terem acesso a troca de mensagens e de e-mails, e relatórios policiais.
A maioria dos relatos são de mulheres na casa dos 20 anos, a mais nova tinha 18, 2 delas trabalharam para Gaiman, 5 eram suas fãs. Com exceção de 1 relato de 1986, todos os outros ocorrem após Gaiman ter 40 anos (de 2000 pra frente).
Katherine Kendall tinha 22 anos quando conheceu Gaiman em 2012, ela era voluntária em um evento dele, ele então a convidou para uma festa, onde ele a beijou. Os dois passaram então a se corresponderem regularmente, flertando por correspondência, e-mails e Skype, Kendall disse explicitamente que não queria fazer sexo com ele, e Gaiman disse que eles eram apenas bons amigos flertando.
Kendall narra que quando criança ouvia os áudio livros de Gaiman e que a mesma voz que ela era apaixonada na infância, agora dizia coisas “safadas” para ela, e que de algum modo, ela se sentia segura com ele, dez meses depois, Gaiman convidou Kandall e outras duas garotas para que esperassem por ele no ônibus de sua turnê para depois saírem para curtir.
Quando Gaiman chegou, ele levou Kendall para o fundo do ônibus e deitou em cima dela, forçando-a a beija-lo, ela tentou sair mas estava em pânico, após um tempo ele a soltou e disse “Eu estou acostumado a ter o que eu quero”.
Tempos depois, Gaiman deu a Kendall 60 mil dólares para ela pagar terapia e, em uma gravação no telefone ele diz “para consertar possíveis danos”.
Pelos relatos de pagamento de valores, Gaiman parece ter total consciência do mal que fez a essas mulheres, as semelhanças narrativas nos mostram um predador sexual, com um tipo especifico, mulheres jovens, que apresentem alguma vulnerabilidade ou dependência emocional com ele.
Gaiman, pelos relatos, é o perfil comum de alguns ditos “dominadores” que interessam-se apenas por pessoas verdes e que manipulam essas pessoas de modo a fazer acreditar que o que ele está fazendo não é abuso.
Por isso que quando digo para você que nunca jogou BDSM, mas que tem interesse que é bom ter medo, não falo para afastá-lo, mas sim para que consiga enxergar para além da máscara, muitos abusadores gostam de se infiltrar no meio BDSM, pois vislumbram nele uma espécie de “álibi” caso haja alguma denúncia.
Gaiman não é um dominador, tal como essas pessoas infiltradas, nunca serão dominadores, há muitas etapas que devem ser cumpridas para que haja uma sessão.
Nem nos relatos das vítimas, nem na defesa de Gaiman há qualquer citação de negociação prévia, o relato de Kendall não faz menção sobre conversas acerca de consentimento ou de BDSM, e isso é um fato, lembramos que a revista afirma ter lido tais conversas e certamente citaria que esse tipo de “acerto” existiu.
O medo nos impede de concordar com qualquer frase dita, o medo nos faz questionar, uma pessoa dominadora de verdade não terá o menor problema em lhe explicar, lhe ensinar e lhe passar uma verdadeira segurança.
Gaiman aproveitava-se da dependência emocional e de seu status de celebridade para ter o que ele quer, como dito pelo próprio.
Stout tinha 18 anos em 2003 quando dirigiu quatro horas até Fort Lauderdale para ver Gaiman ler “Noites sem Fim”, ela o conheceu na fila de autógrafos onde trocaram contatos, vejam só uma fã tem a oportunidade de ter o contato do seu grade ídolo. Eles então trocaram vários emails e conversavam pelo Skype. Três anos depois, ele convidou ela a ir ao hotel dele em Orlando, e terem um encontro, lá ele colocou uma playlist de músicas românticas e a segurou com uma mão. Gaiman não acreditava em preliminares ou lubrificante, segundo Stout, quando ela disse que estava doendo muito, ele disse que isso era problema dela e que ela não estava sendo submissa o suficiente.
Stout nunca se interessou por BDSM, ela conta que Gaiman nunca perguntou para ela o que ela gostava na cama, nem que nunca discutiram sobre “Palavras de segurança”, “After care”, “limites”, ele exigiu ser chamado de Mestre e bateu nela com um cinto, “Que não eram tapas sexuais”, ela disse que informou não estar gostando e ele disse que essa era a única forma que ele se excitava.
Em 2007, Gaiman and Stout fizeram uma viagem, na última noite, Stout apresentou uma infecção urinária grave, ela disse que eles poderiam fazer outras coisas, mas que ela estava com muita dor e que não seria possível ele penetrá-la ou ela “morreria”, ou seja, era um grande não, um limite rígido que deveria ser respeitado por qualquer praticante de verdade do BDSM, mas Gaiman não é um praticante de BDSM, ele é um abusador que aproveita-se das suas vítimas, ele a virou na cama e tentou penetrá-la com seus dedos, ela disse não e ele se afastou, porém investiu novamente, dessa vez com seu pênis, Sout narra que nesse momento ela simplesmente desmaiou ficando na cama até ele terminar.
Você pode se perguntar como alguém que em 2006 foi violentada aceita viajar com o mesmo homem? Pois é isso que predadores sexuais fazem, convencem as vítimas de que o que eles fizeram não foi abuso, nem violência, impedem que elas tenham acesso a conhecimento, e só depois de muito tempo dão-se conta de que o que viveram foi uma relação abusiva.
Se você nunca ouviu falar em BDSM a defesa de Gaiman pode até parecer plausível, a forma como as cenas são narradas, as ações empregadas por ele podem sim ser parte de um jogo erótico, até mesmo a ideia de “forçar alguém” a lhe obedecer. Tudo isso é válido dentro do jogo, desde que haja Consensualidade, e essa consensualidade pode ser revogada a qualquer momento.
A diferença entre o BDSM e o que Gaiman, supostamente, fez, está na nossa longa lista de exigências e condutas. Não é BDSM sem negociação, não é BDSM sem conversa, não é BDSM sem palavra de segurança, mesmo em casos de CNC, não é BDSM se uma pessoa pede pra parar e a outra não o faz.
Pelos relatos, Gaiman é um predador com modus operandi claro, ele escolhe suas vítimas, ele as cultiva e só depois delas estarem completamente apaixonadas pelo grande escritor grisalho ele as preda.
Eu não sei se Gaiman é culpado ou inocente, isso a justiça dirá, mas sei que tudo que veio à tona até agora prova que, se verdade for, Gaiman é tudo, menos um dominador BDSM. Mas pode ser um bom exemplo para nós reconhecermos os infiltrados em nossa comunidade.
AUTOR
MESTRE CRUEL
Olá, sejam muito bem vindes. Sou o Renan, mas no meio fetichista sou mais conhecido por Mestre Cruel.
Tenho mais de 15 anos de prática, Mestre sádico, que tem no spank seu maior fetiche.
Produzo conteúdo para redes em especial o Rapidinhas do Cruel, vídeos curtos sobre teoria BDSM.
Se quiser saber mais, acesse minhas redes em: https://linkme.bio/mestrecruel