JOGO LÚDICO DO BDSM PARTE 3: O JOGO COMO INTERMEZZO

Olá amores, voltamos com mais uma parte sobre o “Jogo Lúdico do BDSM”. Se você chegou agora, recomendo que leia os dois primeiros artigos: “O Jogo Lúdico do BDSM – Parte 1” e “O Jogo Lúdico do BDSM Parte 2: consensualidade e espaço lúdico”.

Aproveitamos para ressaltar: encarar o BDSM como um jogo não tira a sua seriedade e, principalmente, a responsabilidade dos jogadores sobre o que está acontecendo. Uma partida de xadrez é um jogo, e é sério. Para Huizinga, desde que obedecidas determinadas regras e as características, até a guerra pode ser considerada um jogo (regras, obviamente, que não são seguidas no mundo atual rs).

A ideia desde o primeiro artigo dessa série é, justamente, entender como funcionam os jogos e, portanto, como essas características estão ligadas com os pilares do BDSM e, portanto, como muitas das questões que o define estão presentes na composição do meio, já é um jogo lúdico.

Hoje nossa conversa será sobre outro ponto das características dos jogos: ele ser um intermezzo da nossa “vida real”. E esse é um ponto beem delicado e que vemos muitos pseudo-jogadores tentar recusar ele. Vamos juntos nisso?

O jogo como evasão da vida real

“Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida ‘corrente’ nem ‘vida real’. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida ‘real’ para uma esfera de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está ‘só fazendo de conta’ ou ‘só brincando’.”(HUZINGA, 2007, p. 10)

Sabe o conceito de “sub de alma”, ou aquele jogador que diz ser top porque “eu sou dominante o tempo todo, é da minha natureza dominar e eu demando isso no BDSM”? Pois é, essas pessoas usam desse discurso para justificar ações abusadoras/estimular uma entrega que não concerne ao jogo em subs.

Lembre-se: jogo tem hora para começar e hora para terminar. E um espaço lúdico para que ocorra. Fora dele, a “vida real” acontece.

Pense como um dimmer: você eleva, diminui intensidade e, também, desliga a luz. É preciso que seja possível ter esse momento de “sair do jogo” e voltar para a vida real. Se você não consegue identificar mais quando está “só fazendo de conta”, ou seja, assumindo uma persona, bom, é importante estar atento para a correlação entre isso e questões de saúde mental. Se você precisa performar essa persona do jogo o tempo todo, podem existir demandas que mereçam atenção.

Vamos seguir na mesma linha de Huizinga: crianças sabem quando estão jogando. Elas têm ciência de que, quando performam que são médicos, astronautas, bombeiros, é um “faz-de-conta” que assumem e que, eventualmente, isso acaba – e sabem quando isso acaba. Todos os jogadores do BDSM devem também.

Jogo como função que facilmente pode ser dispensada

“Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável, o jogo é uma função que facilmente pode ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade” (HUIZINGA, 2007, p. 9)

“O jogo atua como intermezzo, ou seja, como interlúdio em nossa vida cotidiana. Se situa fora do processo de satisfação primária. É um acompanhamento, complemento”.

Muitas pessoas as vezes relatam que possuem uma certa “compulsão” ou “dependência” do BDSM, podendo tornar-se disfuncional, não conseguindo assumir outras ações em sua vida sem estar focado em buscar o prazer obtido no BDSM. Novamente, é aquele jogador que não consegue, muitas vezes, nem diminuir a intensidade do dimmer, quem dirá desligar essa luz.

Para ser caracterizado ainda dentro do jogo, é importante que ele seja realizado sem substituir uma função social não-supérflua dos jogadores. Por exemplo, somos seres biopsicossociais, então a socialização com nossos pares é necessária. Se o jogo está limitando seu contato social de forma a alterar essa funcionalidade, não é mais jogo. Se as práticas precisam ser exercidas afetando questões que, aí sim, são necessidades urgentes de nós, também não é mais jogo.

Aqui cabe uma ponderação na fala do Huizinga: “só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade”. Aqui cabe profundo cuidado com essa fala, pois ela é uma brecha para que discurso de abusadores cooptem quem não está muito atento ou está sendo relapso com seus cuidados.

O prazer trazido pelas práticas do BDSM não pode sobrepor, novamente, aquilo que são nossas necessidades básicas do dia a dia: socializar, cuidar da saúde mental, alimentar-se, buscar sua subsistência, cuidados com vulneráveis que estão sob sua tutela, entre outros.

Aqui precisamos trazer um conceito importante: funcionalidade.

A funcionalidade não está necessariamente relacionada (ou não deveria) com ser funcional de forma utilitária. Ou seja, não é porque você trabalha plenamente que pode estar funcional. Assim como você pode ter uma questão de saúde que não comprometa sua funcionalidade (por exemplo, pessoas com quadros ansiosos podem ser funcionais e, portanto, não há alterações que caracterizam o quadro de transtorno naquele momento).

A definição de funcionalidade, segundo a OMS, em sua Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), está relacionada com os “elementos do corpo, suas funções e estruturas, as atividades humanas e a participação do ser humano nos processos sociais, indicando os aspectos positivos da interação dos indivíduos com determinada condição de saúde e o contexto em que ele vive no que diz respeito aos fatores pessoais e ambientais”.

Essa “necessidade urgente” não pode interferir nisso. Afinal, muitos comprometimentos de funcionalidades, além de alterarem outras características do jogo, fazendo com que ele se encerre de imediato (para isso, volte lá no nosso primeiro texto, que você vai entender!), podem alterar, também, a possibilidade de gerar consentimento ativo por parte dos outros jogadores.

São questões complexas, sabemos. Afinal, como definir o limiar em que alguém está funcional para oferecer consentimento ativo e quando não há? São debates que precisamos enfrentar na sociedade de modo geral. Se pensarmos que apenas no século XXI passamos a conversar sobre como uma pessoa alterada por bebida não consegue oferecer consentimento ativo, imagine outras questões ainda mais imbricadas, não é mesmo? Mais uma vez, precisamos enfrentar isso!

Oque queremos dizer aqui é: cuidado com o discurso de “sou top todo o tempo, é da minha personalidade” ou “eu não me desligo da minha persona alfa”, ou, ainda “se você não é sub de alma (ou seja, se não se desliga da persona submissa), não é submisso(a)”. Não conseguir fazer isso pode ter diversas implicações psicológicas, mas, acima de tudo, já desvirtua o jogo lúdico. E na ausência dessa característica, o jogo se encerra de imediato. E aí, meus amores, já não é mais BDSM.

Concorda? Discorda? O que tem a opinar? Nossas redes sociais estão com todos os espaços abertos para receber essas trocas! Sinta-se em casa.

Vale lembrar aqui que os apontamentos de funcionalidade e saúde mental são indicativos, mas nada substitui o acompanhamento e diagnóstico, se for o caso, de um profissional da área de saúde mental (psicólogos, terapeutas, psicanalistas e psiquiatras). Nosso objetivo não é passar por cima do lastro de conhecimento que esses especialistas possuem, ok? Cada caso é um caso e apenas o acompanhamento clínico com profissionais especializados podem aprofundar e direcionar isso.

AUTORA

HACKING SEX

Nascido de uma ideia de mudar o sistema por dentro, aproveitando as brechas de vulnerabilidade para repensarmos e fortalecermos as concepções sobre (a)sexualidade(s), em constante (des)(re)construção, feito de forma coletiva. Construindo uma comunidade com o fortalecimento de todos os membros, abrindo espaços para trocas colaborativas de ideias, para que todos possamos crescer juntos no processo.

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Uma resposta

  1. Excelente explanação do BDSM dentro da pirâmide de Maslow! Primeiro temos que suprir nossas necessidades básicas, e só depois podemos nos dar o prazer de subir alguns degraus e satisfazer nossos desejos “dispensáveis” (com perdão do termo). Demorei muito tempo para me permitir ter real interesse pelo BDSM, pois só quando cheguei a um ponto de autoendendimento razoável é que me senti apto a libertar alguns dos meus desejos. O BDSM pode ser muito prazeroso mas também pode afundar aqueles que não conseguem se entender de maneira sólida.

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