Que nesse 24/7, reste menos jaulas e mais voos livres

Pensei em muitas coisas para trazer nesse 24/7, inclusive, até mesmo, fugir um pouco das reflexões, mas ao longo das últimas semanas tenho esbarrado constantemente com alguns questionamentos que considero importante para toda pessoa que, de alguma forma, tenha uma sexualidade ainda considerada desviante pela sociedade.

E diante de reflexões gritantes, vamos dar vazão a esse fluxo intenso e deixar que os pensamentos tomem seus rumos.

Curiosamente, hoje ouvindo um podcast (Razão Inadequada, que super recomendo), esbarrei numa frase bastante interessante: “se pensarmos bem, toda pessoa se encontra em algum tipo de desvio, ninguém está na norma”. A fala era sobre monogamia, mas pensemos isso sobre todos os aspectos da sexualidade: bem no fundo, não há alguém que esteja dentro do padrão. Em alguma medida, sempre há um desvio.

Ao pensar em “normas”, sempre recaio na reflexão trazida por Paul Preciado (um dos grandes nomes hoje sobre sexualidade e que super recomendo suas obras). Em 2019 ele faz uma intervenção na 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana e tem uma fala super provocativa para aquele cenário:

“[…] que eu também fui, um dia, uma mulher em psicanálise; que me atribuíram um sexo feminino, e como o macaco mutante, também saí dessa jaula apertada, talvez para entrar em outra jaula; mas ao menos, dessa vez, por meus próprios pés. Falo-lhes, hoje, desde essa jaula elegida e desenhada, do homem trans, do corpo de gênero não binário. Uma jaula política que é, em todo caso, melhor que a dos homens ou das mulheres, porque ao menos reconhece seu estatuto de jaula.”

Nós entramos numa jaula logo assim que nascemos: cis, hétero, praticante de sexo baunilha, que tenha gosto por práticas sexuais (ou caso contrário, possui alguma patologia). Ao longo da vida podemos escolher outras “jaulas”: nos entendermos com outras identidades sexuais, nos identificarmos com determinadas comunidades fetichistas (como o BDSM, por exemplo).

Mas até que ponto estamos imersos ali por um senso de identificação e comunidade, e não estamos adentrando outras jaulas, sem reconhecermos elas tal como são?

Por exemplo, não raro, gera-se um profundo estranhamento quando um bottom, por exemplo, “descobre-se” switcher, ao experimentar dominar e gostar daquilo? Os comentários impiedosos de muitos membros da comunidade me fazem tecer um questionamento que, cada vez mais, tem martelado em minha mente com mais força:

– Até que ponto não buscamos transgredir as correntes e grilhões das normas padrões sociais e, ao mesmo tempo, criamos novos encarceramentos para nossos companheiros de comunidade?

Isso não se restringe ao BDSM, claro. Mas, pelo dia de hoje, é aqui que convido vocês à reflexão.

É claro que, como comunidade, temos elos em comum que nos unem. Afinal, é disso que se trata, não é mesmo? Afinal, “comunidade” é uma palavra latina que, em sua origem, vem da ideia de “Communis”: comum, geral, compartilhado por muitos, público.

Mas somos tantos dentro de nós mesmos, uma série de nuances, de matizes…. Aquilo que nos é comum nos une, mas não somos idênticos. Nossas vivências, gostos, preferências, não são únicos. Nós mesmos não somos os mesmos de minutos atrás, quando você começou a ler este texto. As poucas palavras lidas até aqui já te transformaram, ainda que pontualmente, de alguma forma.

E nos encarcerarmos em uma única identidade possível, condicionada a sermos aquilo para sempre, pode ser altamente limitante. E se um dia não nos coubermos ali mais? Deveremos apagar todos os demais traços, desejos e anseios para caber na jaula que nós mesmos entramos, com nossos próprios pés?

A identidade é passível de ser mutável. Devir. Em trânsito. Entender isso é um primeiro passo para, talvez, não entrarmos em novas jaulas, mas podermos vivenciar uma liberdade plena das nossas diversas potencialidades. E que possamos nos unir com o comum dos nossos comunas, sem colocar em xeque ou castrar suas multiplicidades.

AUTORA

HACKING SEX

Luciana Rodrigues [ou a persona Hacking Sex, já que as duas se confundem muitas vezes]. Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC e uma transgressora e libertária sexual de longa data. Luta por uma educação sexual coletiva, realiza com todos e para todos, com (des)construção diária e contínua.

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