DOMINATRIX DE ONDE SURGIRAM ESSAS CRIATURAS?

Dia desses estava novamente empenhada numa das perguntas mais recorrentes das alunas: como eu deveria me intitular? Domme, Senhora, Mistress, Dona… qual nome – ou melhor – título – deve anteceder meu nome no BDSM? A dificuldade entre uma decisão que me parecia tão simples e a recorrência dessas dúvidas me saltou aos olhos. Uma incongruência que até então não havia chamado minha atenção, só poderia ser solucionada quando percebesse que não se trata de algo tão simples a ser escolhido, e resolvi investigar as origens de tamanhas dificuldades.

A coisa estava na cara: não é simples escolher – ou assumir – como queremos ser vistas perante a sociedade. Quando podemos escolher entre o rosa e o azul a coisa fica mais livre, mas também mais complicada. Por estarmos ‘acostumadas’ com à atribuição vertical e violenta sobre nós – seu papel vem pronto antes de você nascer – e se você escolhe, precisa segurar o rojão da liberdade.

No BDSM tratamos de nomear o lugar onde estamos nessa hierarquia toda. Títulos pressupõem a forma que desejamos e queremos ser tratadas, mas, principalmente a classe à qual queremos pertencer – ou até suponhamos que pertencemos em outras vidas e viemos reivindicar o nos foi tirado. Na Economia das trocas simbólicas esse título tenta ajustar a maneira que somos vistas por nós mesmas e reconhecidas socialmente.

Claro que fui pesquisar mais a fundo, pois já percebendo algumas evidências empíricas da maior importância de alguns nomes em relação a outros. Porque essa diferença, enquanto fato plenamente observável? E numa dessas pesquisas me deparei com o seguinte: a maioria dos títulos são só isso mesmo, títulos per se. São nomes atribuídos a corpos que ocupam lugares poderosos a priori. São esses locais, esses lugares de poder que fornecem o título. Como se um qualquer, de repente, compra por muitos dinheiros um título de barão. Ele passa a ocupar esse lugar não por agir como um barão, mas porque passa a ser um barão. Esse corpo pula de status, passa a figurar numa espécie de repartição hierárquica da sociedade que lhe retribui o tempo de sua linhagem, do seu casamento, da sua associação com nobreza. Claro que estamos falando de longa duração historiográfica, afinal, para a Rainha Mãe, alguns artistas receberam seus títulos depois de terem seu trabalho artístico – e não suas naturezas – reconhecidos. Mas guarde essa expressão: trabalho artístico.

E voltemos às Dominas e mulheres dominantes e à História e sua atividade investigativa, ela é muito interessante… vejam só.

Sempre me intrigou o fato de poucas mulheres se intitularem Dominatrix. O fato óbvio de relacionarmos Dominatrix à atividade remunerada da dominação salta aos olhos, pois numericamente vemos menos Dominatrix Palmirinha ou Dominatrix Carla ou Dominatrix Dommenique, ou Dominatrix Marcelete por aí; e muito mais Mistress, Senhoras e Dommes. Outra inferência sobre essa escassez vem da própria história do BDSM brasileiro recente, equiparando dominatrix pagas a mulheres que se prostituem – e daí outra inferência: que são mulheres que não priorizam o bdsm, mas sexo e dinheiro. Mas de onde, afinal vem essa ideia? Pela justiça do estruturalismo que eu pratico, também não posso atribuir ao brasileiro um caráter preconceituoso por essência. Essas mil atribuições simbólicas surgiram de algum lugar e, pra descobrirmos, vamos fazer um estudo etimológico – sobre a origem das palavras, seus primeiros significados e as disputas de sentido que ocorrem dentro de várias formações discursivas, que vão modificando os atributos simbólicos dessas palavras e como a gente reage até quando ouve alguma delas.

O uso medieval de Madame, o uso de Donna, o uso contemporâneo de Domme advém da palavra Domina, que está na raiz de muitos títulos honoríficos femininos. É o equivalente a Dominus, palavra latina que nomeia o senhor, o titular, o soberano, o dono romano de escravos, de terras, de posses e, consequentemente, legitimado para exercer poder vertical sobre outros cidadãos, mulheres e escravos. Aliás, ele recebe esse nome após terem sido comprovadas essas atribuições maiores que um cidadão romano comum não merece, por exemplo. A Domina, por conseguinte, tem essas mesmas atribuições, mas elas são adjacentes ao Dominus e só existem por causa dele. Algumas se tornam viúvas e continuam com o titulo, mas no princípio… era ele. O que primeiramente é dele se estende a ela, e mesmo assim com algumas ressalvas. Ela é dona, dominna, senhora das posses do Dominus que estão localizadas num território específico, a casa.

Domus, é casa, em latim. O Dominus é dono da casa – mas sua casa é o mundo, a vasta Roma. Dominna é dona do que está dentro da casa, casa de pedra e pilares literalmente. Ela seria uma espécie de subgerente local, a qual é atribuída a função de manter o fogo acesso, a retaguarda pra que ele seja, além de Dominus, Dominator, ou seja, além de dono, um agente que exerce a dominação através das guerras e conquistas. O sufixo -tor nomeia um agente, alguém que faz. Não se trata de um título, mas de uma função. Por isso a diferença latina entre dominus e dominator. A dominna, por exemplo, não é Dominatrix. Agora você percebe que o sufixo -trix é o equivalente feminino de -tor. -Trix e -tor determinam funções, são agentes, não se trata de uma titulação por casamento, maneiras, moralidades ou simbologia social.

Alguns poucos registros da palavra Dominatrix vem desde 1560, sendo ainda equivalentes à Mistress – título dado às supervisoras dos conventos e que possuíam um poder pedagógico sobre as noviças. A partir daí o registro da palavra Dominatrix se perde em relação a mulher, mas se preserva no campo religioso da Santa Igreja – a ação dominante não se dá mais através de mulheres, mas de Instituições. No final da idade Média, uma mulher agir de maneira dominante era inconcebível e levava à morte. Seguimos nessa toada até o final do século XIX, quando lemos num compêndio de literatura cristã que a Religião católica – enquanto agente dominante para modificar a sociedade – era citada como Dominatrix no trecho a seguir:

[Catholic, as] Religion, the supreme dominatrix, exercises her salutary influence on every department of individual and social life, there is no branch of our culture in which Christianity has not effected important meliorations. [Brownson’s Quarterly Review, October 1850]

Vejam só… Dominatrix. Mas você também notou o her? Porque pessoalizar a igreja na figura de uma mulher? Poderia ser escolhido dominator ou dominatrix, e por uma questão semântica, foi obviamente escolhida a palavra Dominatrix. Mas porque o uso de her para falar de uma instituição? Certamente o uso não se trata de um erro de escrita. Isso prova que, historicamente, a dominatrix, a mulher de ação, sempre existiu e equivale em função ao dominator. Porém, nos registros históricos e memorialísticos, não mais poderiam ser lembradas como mulheres de carne e osso; seriam, no máximo, a igreja, as instituições, entidades nada pessoalizadas e sobre as quais não poderíamos nem sequer dar algum sentido memorialístico. A mulher não poderia ser citada como agente de ação dominante direta. Ou seja: a dominatrix existiu, a dominatrix é e sempre será uma mulher de ação dominante, evidenciada no ato falho desse escritor católico que defende ser a igreja, her sim, a agente de dominação sobre a sociedade.

O apagamento da palavra Dominatrix continuou, pois deixou de ser usada até em contextos religiosos. Recuperada pela comunidade BDSM a partir dos anos 60, inicialmente Dominatrix era uma titulação importante. A maioria das Top se denominavam, a priori, Dominatrix, agentes de dominação. Mas fazendo a arqueologia da comunidade BDSM, ocorreram cismas quando, no mundo ocidental, percebeu-se, no campo da Sociologia e da História, a depreciação de funções e do trabalho em oposição aos títulos.

Como um agente, percebeu-se a Dominatrix reduzida somente à função, ao -trix. E ter apenas a função, sem o título, tornou-se depreciativo: A dominatrix deixou de ser um título honroso per se. Quando se percebeu, no campo das ciências humanas, que agir era percebido como trabalho, que o trabalho era associado a algo de menos-valia, que o trabalho é pra quem está sofrendo coerção ou necessidade, que o trabalho era associado às ações não-livres e não-criativas… ou seja, quando o mundo ocidental percebe a violência dessa verticalidade, curiosamente ocorre uma cisma na Comunidade. Ao invés de se fortalecer a ação, se fortalecem os títulos. Dentro do BDSM ressurge o fantasma de um antigo discurso grego – comprovado por fontes – de que o trabalho é algo inferior, não é uma ação de quem tem título e o privilégio da não-ação. Quem tem título age por hobby, por atividade livre, por trabalho artístico, pela filosofia, pelo lifestyle.

Nesse momento – e claro, nunca de maneira pessoalizada ou pontualmente maldosa – algumas Dominatrix passaram a incluir a palavra lifestyle em suas denominações, marcando, na linguagem, que Dominatrix estava deixando de ser um título + função, mas somente uma função de trabalho. E lá está novamente a Dominatrix na boca da galera, aquela que primordialmente era a mulher que, além de dominna, também age como o dominator, sendo jogada de um lado pra outro e com uma conotação ainda pior que a santa igreja havia atribuído. Ela adquiria uma figura relativamente submissa, e ser Lifestile Dominatrix eximia rebaixamento. E o rebaixamento se aprofundou quando Dominatrix resolveram cobrar pela sua ação dominante.

Claro que falamos de roleplays. Claro que muitas Ladys, no BDSM, eram e ainda são mulheres trabalhadoras. Mas aqui gosto de abrir um parêntese histórico bem curioso: Quando da decisão de algumas dominatrix cobrarem pela sua ação – e, para o senso de roleplay, isso as tornaria mais ainda rebaixadas porque não eram lifestyle, eram elas as que trabalhavam e não teriam pessoas trabalhando para si, como as tituladas – por exemplo, as ladys – muitas Dominatrix não queriam nem usar lifestyle Dominatrix! Elas optaram por Mistress.

Mistress, desde o século XII, figura uma mulher de comando, de caráter principalmente religioso e professoral, as maitrêsse dos conventos. Mas, como sabemos, muitos equivalentes femininos a nomes de status e poder masculinos com o tempo adquiriram formas pejorativas. A Mistress, até então equivalente a Mestre, no século XVII já é a amante de um homem casado. O percurso etimológico da palavra é uma história à parte, mas cabe dizer que a Mistress, enquanto amante, era uma mulher que se relacionava com homens casados pelo afeto verdadeiro, essencial, pelos atributos femininos, pela magia de ser mulher. Nunca pelo sexo, pela dominação ou pelo dinheiro – diferente das cortesãs, que também no século XVII passaram de simples equivalentes femininos de cortesão (participantes de uma corte) para uma significação social pejorativa: prostitutas, trabalhadoras de bordeis. E quem foram as primeiras mulheres a exercerem atividades fetichistas remuneradas segundo a historiografia? As cortesãs. Mesmo que Mistress recebessem seus tributos e presentes, elas não aparecem exercendo nada depreciativo em relação às cortesãs – que também recebiam tributos e presentes. As cortesãs exerciam ação dominante depreciativas em relação às mistress, eram mercenárias e seus objetivos escusos. As Mistress, mesmo sendo amantes, mesmo sendo sustentadas, não. A ação da Mistress era pela essência do amor, dominadoras por natureza feminina. Pelo lifestyle.

Eu mesma nunca tinha percebido que usava Dominatrix como função e havia esquecido que também é um título. E um título, nesse caso, que carrega uma História de longa ação. A História fornece dados pra gente refletir porque Dominatrix pareceu algo depreciativo, como algo menor, mais… submisso. E que não me entendam mal os submissos, pois nesse barco estamos todos juntos e sabemos o quanto a submissão é alvo de preconceito descabido e idiotizado. Me dá vontade de dizer a algumas pessoas: vá abrir um livro! Podem acreditar que as mulheres que se intitulam Dominatrix são atravessadas por várias estruturas depreciativas em comum com classes consideradas inferiores, por isso aqui estamos nessa tentativa de compreensão. Escolhas nunca são feitas por acaso – não acredito que no mundo existe uma alma metafísica ou puramente intuitiva que nos oriente nas escolhas como autômatos com um espírito santo a la bangu.

Quando falamos em BDSM falamos em títulos que advém de posições que exercem poder. Uma dúvida sempre surge: Qual título devo usar? A minha proposta aqui é bem horizontal: Que ideia vem a sua mente quando falamos Lady? Ou quando falamos Mistress? Certamente você vê imagens e lugares diferentes, e até corpos diferentes a partir dessas palavras. A maioria dos títulos femininos têm equivalentes masculinos, mas com uma observação muito importante: na História, palavras que eram equivalentes em significado para homens e mulheres foram sendo depreciadas para o gênero feminino. E dentro de cada gênero, mais hierarquizadas ainda. Enquanto a lista masculina continua falando de poder e status elevado, a lista feminina adquiriu um conjunto muito diferente de conotações, muitos deles com subordinação ao status mantido pelos homens.

Pronomes de tratamento mostram como as condições sociais marcam nossas falas. Por isso é tão importante pra quem começa a praticar saber dessas pejorações e saber em que século está. É importante saber, antes de sua função, qual a função da Comunidade BDSM para você e, daí sim, fazer escolhas de acordo com isso – talvez num sentido de recuperar a importância desses nomes e toda a simbologia que eles carregam. As palavras têm história e perpetuam símbolos, diferenças e maneiras de trocar afetos. É importante ter a liberdade de agir de maneira crítica e não simplesmente pensar, como o senso comum, que Domme se chama Domme porque está mais ligada ao sadismo, e dominadora mais ligada ao D/s. Ou que Lady é lady porque somente a ela se atribui feminilidade, ou à Mistress o sentido de educação. Mas como eu disse, estamos aqui pra desenvolver percepção crítica e autonomia; estamos aqui para todos, nos afastarmos o máximo possível da servidão coletiva e violenta. Nosso inimigo não está entre nós, disso eu tenho certeza.

AUTORA

DOMMENIQUE LUXOR

Dommenique é Dominatrix desde 2003. Historiadora e pesquisadora de Filosofia, Sociologia e Linguística, Gênero e Poder, também exerceu a atividade Profissional por 15 anos.

Continua se dedicando às intersecções entre BDSM, cultura brasileira e gênero. Mantém a permanente divulgação dessas pesquisas na produção de conteúdo, cursos e instigando reflexões, desconfortos e debates.

redes: https://www.instagram.com/dommeniqueluxor

site: https://www.dommenique.com.br/linktree

Comunidade Feticheira: http://online.cursodominatrix.com/feticheira

Uma resposta

  1. Matéria muito interessante e completa! Cheia de fatos históricos que eu não conhecia, vou precisar reler algumas vezes para absorver todas as informações.

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