Em nossa primeira coluna, falamos sobre a parte do “jogo” da definição de “jogo de troca erótica de poder”, trazida tantas vezes para definir o BDSM. Falamos, também, sobre as características dos jogos, segundo um dos grandes teóricos (e referência de 10 a cada 10 pesquisadores sobre jogos e lúdico) sobre o tema: o historiador Johan Huizinga.
Poderíamos parar por ali, mas convenhamos, temos tantos pontos que é possível aprofundar (e, até mesmo, questionar, por que não?) sobre as características do jogo trazidas pelo historiador e o BDSM. E, por isso, nessa parte 2, queremos falar sobre duas características importantes que Huizinga traz:
• jogo como atividade voluntária e consensual
• todo jogo existe no interior de um campo previamente determinado.
Vamos juntos nessa reflexão? 🙂
O JOGO COMO ATIVIDADE VOLUNTÁRIA E CONSENSUAL
Para entendermos muito dos pontos, é possível fazer analogias com outros jogos que são mais “explícitos” seu caráter lúdico em nosso dia a dia e correlacioná-los com o BDSM.
Para que se configure como jogo, é preciso que seja realizado de forma voluntária, ou seja, dentro do espaço do jogo. Voluntário, por definição, é aquilo feito espontaneamente, por vontade própria, sem obrigação ou controle, que se pode decidir em fazer ou não.
Pense, por exemplo, em um jogo de xadrez. Você só começa uma partida se estiver disposto a começar o jogo. Ninguém pode obrigá-lo a mexer a primeira peça no tabuleiro. Assim como, da mesma forma, se você não quiser continuar a partida, derrube o rei e acabou. Você não pode ser obrigado a continuar.
Para ficar mais claro, vamos ainda trazer jogos hierárquicos: um pique-pega, no qual você é aquele que deverá correr atrás dos demais. Mesmo em uma situação desvantajosa, você pode parar a brincadeira a qualquer momento e falar: não quero mais. Ninguém pode te coagir a continuar em momento nenhum. Você tem total liberdade para entrar e sair.
No BDSM, como jogo lúdico, temos também essa premissa. Em analogia, a safeword/safesign é nossa “derrubada do rei”. É o anúncio de paralisação e saída do espaço lúdico. É um dos mecanismos de retirada imediata de consentimento.
E está aí outra palavra-chave importante: consentimento. Há uma manifestação favorável daquela parte, uma anuência ao que foi determinado como as “regras do jogo” (ainda vamos falar sobre isso). A quebra das regras do jogo invalida esse momento. Interrompe-se todo o momento lúdico imediatamente, pois, afinal, o consentimento ocorreu diante de questões pré-estabelecidas.
Podemos – e, de fato, é necessário – falar sobre as condições em que esse consentimento é dado. Retornando ao exemplo do jogo, se você é coagido emocionalmente a participar de uma partida que não era do seu interesse, isso esbarra na questão de estar ali de forma voluntária. Afinal, só pode ser voluntário aquilo que não é coagido, forçado, que depende única e exclusivamente da sua vontade. Ainda que seja uma ordem feita em uma prática verticalizada, você se dispôs a dinâmica de submissão, na qual delimitou o que estaria disposto a fazer e o que quebra a sua voluntariedade/consentimento (limites).
Aqui podemos ir muito longe, mas ainda precisamos falar sobre um segundo ponto. Então, vamos juntos para outra característica dos jogos?
TODO JOGO EXISTE NO INTERIOR DE UM CAMPO PREVIAMENTE DETERMINADO
Se falamos que esse campo é previamente determinado, é porque há um espaço específico para que ele ocorra. Isso não significa que, por exemplo, ele precise ser traçado nas quatro paredes de uma masmorra.
Esse campo é apenas físico? Na minha perspectiva, diria que não. Existe um campo lúdico mental, um estado alcançado quando você entra e sai do jogo, que é previamente determinado. Você entra e sai dele.
Entra e sai. Se você não consegue sair dele, não é jogo mais (inclusive, esse é outro ponto característico dos jogos, tem hora para começar e terminar, é trânsito, ele não é permanente).
Como Huizinga diz, “Todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea”.
Ele ainda faz uma analogia que, tal como um “culto sagrado”, o espaço do jogo é um espaço sagrado, mágico, dentro do qual respeita-se determinadas regras que compõem aquela dinâmica – aqui temos as bases, negociações, a consensualidade oferecida previamente e o respeito a retirada dela, caso venha a ocorrer.
“Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial”.
Portanto, ainda que você viva com uma pessoa, tendo uma TPE 24/7, ainda assim o ambiente lúdico é um mundo previamente delimitado (ou seja, ele não ocupa todos os ambientes) e temporário, ou seja, ele tem começo e fim (eu sei que aqui vamos entrar em embates com os praticantes de TPE 24/7, mas pense nisso mais como uma abertura de discussão para vocês falarem sobre também, viu?).
Unindo os dois pontos, é consensual e voluntário a determinação desse campo. Lembre-se: se uma característica não for cumprida, o jogo termina!
Reflita aí como o seu jogo está em consonância com esses pontos! E se tiver alguma dúvida ou discordar, venha conversar!
AUTORA
HACKING SEX
Nascido de uma ideia de mudar o sistema por dentro, aproveitando as brechas de vulnerabilidade para repensarmos e fortalecermos as concepções sobre (a)sexualidade(s), em constante (des)(re)construção, feito de forma coletiva. Construindo uma comunidade com o fortalecimento de todos os membros, abrindo espaços para trocas colaborativas de ideias, para que todos possamos crescer juntos no processo.
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O JOGO LÚDICO CHAMADO BDSM – PARTE 1