Olá amores, hoje quero falar sobre um tema que choca muitos, causa estranhamento em outros e que ainda é pouco falado: a comunidade assexual tem espaço sim no BDSM. Contudo, para falar sobre isso, a gente precisa falar sobe muitas nuances e, assim, vamos conseguir tirar uma visão de estranhamento sobre o tema.
Por isso, vamos juntos nesse processo? Vamos tentar fazer uma trilha que vai ajudá-lo a entender melhor tanto sobre a assexualidade e como isso
A entrada na trilha: o que é a assexualidade?
Para começarmos a nossa trilha, a gente precisa entender logo de partida o que é a assexualidade. Afinal, ele é um termo que, infelizmente, cai facilmente em um lugar comum: a assexualidade como uma “não-sexualidade”. Mas então, não é bem assim, sabia?
A assexualidade é uma sexualidade marcada por uma contraposição com a alossexualidade, ou seja, pessoas que tenham uma frequência sexual (aqui sexo dentro do conceito social de sexo = coito) dentro da “normalidade” como a sociedade define. Assim, temos um espectro que pode ir desde a escala de cinza, quando há uma menor frequência sexual, sem que gere sofrimento para a pessoa (gray-assexualidade), passando por uma sexualidade na qual a atração física dependa do estabelecimento de um laço (que pode ser afetivo, romântico, de confiança, identificação intelectual, entre outras), ou seja, ela não se dá de imediato (demissexualidade), podendo ir até mesmo para pessoas que não sintam essa atração sexual at all (assexuais estritos).
Por aí já temos um ponto, né? A assexualidade não é única e, portanto, envolve diversas vivências. Assexualidade não significa falta de libido! Afinal, muitas pessoas assexuais têm coito (grayassexuais e demissexuais) e, até mesmo os assexuais estritos podem sentir tesão. Eles podem se masturbar ou, então, direcionar essa energia libidinosa para outros campos.
Na verdade, nós fazemos isso constantemente também. Mas vamos entender melhor sobre isso a seguir.
Primeiro check-point: a relação da assexualidade com nosso conceito de sexualidade
A assexualidade está ligada com um conceito de sexualidade intimamente ligada a coito, justamente, porque nossa sociedade contemporânea ainda reduz muito nossa concepção sobre o tema. Sexualidade está ligado com os campos de prazer, com a libido. Inclusive, a própria palavra libido vem do termo homônimo latino, que significa desejo ou anseio.
Você pode dizer que é apenas o coito que move seu desejo? Bom, se você está por aqui, imagino que não.
A ideia de sexo ligado a coito vem de um reducionismo dessa ideia, vinda com a Era Vitoriana, de que sexo existe para fins reprodutivos e tudo aquilo que desvia disso é patológico. Daí o sadomasoquismo, a homossexualidade, bem como todas as práticas desviantes terem sido tão penalizadas, criminalizadas e, pior, tidas como doenças. Entenda: se patologizamos sexualidades desviantes, temos um certo discurso científico, como se estivéssemos negando uma “natureza biológica”, desviando daquilo que nascemos para fazer: “crescei-vos e multiplicai-vos”. Nesse ponto, esse discurso está muito mais próximo da moralidade judaico-cristã do que da ciência.
E aqui eu me dou a liberdade de citar Foucault em uma obra importante para os estudos sobe sexualidade: a História da Sexualidade. Desde o século XVIII temos um discurso racionalizante sobre o sexo que nos leva para regular o sexo como um padrão ótimo. Ele precisa ser gerido, consertado, trazê-lo para o máximo de eficiência (ainda sob uma ótica de fins reprodutivos). Tudo que desvia do padrão reduz essa eficácia.
E daí a assexualidade ter esse estigma de patologia. Afinal, se é “natural” o desejo pelo coito, a falta de interesse ou, ainda, que esse interesse não se dê pelas vias padrões, foge da gestão do Poder. Daí inúmeras vezes vemos tantos discursos de “você precisa ver isso daí, hein, deve ser algum problema de saúde” quando um assexual se expõe. Porque foge de uma ideia que ainda está muito enraizada em nossa mente da necessidade do coito para cumprir um “dever conjugal”.
Ainda que estejamos começando a engatinhar para discussões sobre não-monogamia, tenhamos avançado fortemente sobre o feminismo e cada vez mais questionemos o papel do “dever conjugal”, fato é que naturalizamos o coito. Ele precisa existir ou há algum problema biológico. E não é bem assim.
Comecemos pelo fato de que a sexualidade e, consequentemente, a libido, não necessariamente estão obrigatoriamente alinhadas com o coito. BDSMers sabem disso muito bem. Uma sessão de spanking gera prazer. Uma sessão que envolva humilhação pode levar uma pessoa ao gozo tão intenso quanto uma trepada bem dada.
Nem sempre na história a sexualidade e libido estavam intimamente alinhadas com coito. Isso vem de um discurso que nasce com a medicina moderna que tem, em suas bases, a moralidade da Era Vitoriana. É nesse momento que as sexualidades periféricas começam a surgir. Sim, para ter algo periférico, é preciso que algo esteja no centro. E é a heteronormatividade monogâmica que ocupa esse papel. Se não havia algo central, bom, não havia sexualidades periféricas. Torne-as patologizáveis, tratáveis, medicalizáveis, e teremos um prato cheio para colocar as pessoas com sexualidades desviantes à margem.
E mesmo com tantas revoluções, a assexualidade ainda é resignada, muitas vezes, pelos próprios membros das sexualidades periféricas, como pessoas que precisam “ser avaliadas pois devem ter algo errado”, ainda que não tenham sofrimento pessoal com isso. Quantas vezes ouvi um “não entendo os assexuais, realmente não consigo entender como alguém não se interessa por sexo” de membros do BDSM. As mesmas pessoas que veem prazer em realizar uma sessão sem qualquer contato de coito.
Fucking logic, non?
A assexualidade precisa existir como categoria, como tal, porque ainda temos uma visão reducionista da sexualidade. Um assexual estrito pode gozar com masturbação, segurando um chicote, sendo açoitado. Pode, inclusive, gozar saltando de buggie jump, comendo uma comida gostosa, vivenciando uma experiência intensa que nada teria de “sexual” aos olhos de quem possui uma visão conservadora de uma sexualidade dependente do coito. E, por isso, ela, de certo modo, como categoria e identidade, é resistência. É um contraponto, também, a esse olhar de que o humano precisa, necessariamente, do coito para lidar com o desejo. E, bom, não é bem assim.
Segundo checkpoint: o conceito de sexualidade e o BDSM
E se tem (ou deveria ter) um grupo que entendesse bem o que é um olhar julgador sobre esse distanciamento da ideia da sexualidade ligada ao coito são os BDSMers. O BDSM não depende disso para gerar prazer para os praticantes.
Quando vemos o discurso “BDSM não é sexo”, é porque, de forma consciente ou inconsciente (afinal, nem todo mundo tem esse conhecimento sobre a história da sexualidade), ela está alinhada com esse pensamento de que o sexo é biológico. Que ele é coito. Que ele existe para reprodução. Mas não. Somos culturais. O próprio sexo e a sexualidade como um todo se distingue fortemente entre diversas culturas. Não é porque adotamos um discurso conservador e moralista sobre o tema que essa seja a verdade universal.
(há ainda aqueles que vão apoiar esse discurso de forma consciente para distanciar o BDSM de eventuais concepções de “perversão”. Isso é higienizar o meio, torná-lo limpinho, palatável, moralmente e socialmente aceitável, mas isso é papo para outro post, tá?)
Ao estendermos, dentro do BDSM, a ideia de que o prazer pode se obter de várias formas, tiramos esse estigma higienizador com suporte de um determinismo biológico sobre o sexo. Se eu posso genuinamente gozar ao sentir determinada intensidade de dor (ainda que isso tenha algumas explicações biológicas, mas não determinações dessa natureza. Lembre-se: somos biopsicossociais. E o social e psicológico tem igual importância ao biológico); se sentimos prazer ao dar/receber ordens; se encontramos algo que ressoa em nossa libido quando exercemos um papel diferente da nossa “persona social” (pet play, pony play, primal play, age play, entre tantos outros), como podemos não entender que a sexualidade se expressa de muitas formas e que não necessariamente estarão alinhadas com o coito?
Chegando ao destino: assexualidade e BDSM
Daí chegamos aqui, ao ponto “final” (que é um entremeio, afinal, não há um ponto derradeiro, estamos sempre em movimento): assexualidade e BDSM não são mutuamente exclusivos. Não é a negação da atração física e do interesse pelo coito que tornará uma pessoa distanciada do BDSM. Afinal, muitas vezes, não é a atração física (no sentido de desejar ter um envolvimento que envolva uma transa) que nos motiva a uma sessão. É as vezes a sensação que determinadas práticas podem nos provocar.
E sim, você pode me dizer “ah, mas sempre tem alguém segurando a mão do chicote do outro lado”. Sim. Mas eu posso querer apenas que seja uma pessoa responsável, consciente dos riscos e que me conduza àquela sensação que o contato do chicote com minha pele vai proporcionar. Eu posso fechar os olhos e ser qualquer pessoa. Meu foco atencional não está na persona que segura o objeto, mas sim na experiência sensória que estou tendo ali. E por isso é tão mais fácil entender como um ace estrito (denominação para assexuais) podem sim encontrar vazão para sua libido no BDSM.
E também teremos os outros espectros aqui. Uma pessoa demissexual, por exemplo, pode ter a mesma demanda de geração de vínculo para que alguém possa
Por isso, em vez de desaboná-los ou relegá-los a mais cantos periféricos, que possamos abraçá-los. Ouvi-los. Entender suas dinâmicas libidinosas. E termos olhares menos preconceituosos. Afinal, um tanto quanto injusto que, por tanto tempo tenhamos sofrido com discursos de que eramos doentes, perversos, patológicos e trazermos esse mesmo olhar para a comunidade ace, não é mesmo?
AUTORA
HACKING SEX
Nascido de uma ideia de mudar o sistema por dentro, aproveitando as brechas de vulnerabilidade para repensarmos e fortalecermos as concepções sobre (a)sexualidade(s), em constante (des)(re)construção, feito de forma coletiva. Construindo uma comunidade com o fortalecimento de todos os membros, abrindo espaços para trocas colaborativas de ideias, para que todos possamos crescer juntos no processo.
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Uma resposta
Apesar de ser bastante sexualizado, eu consigo entender a prática BDSM como não necessariamente ligada ao sexo. O tesão causado por determinadas práticas é tão intenso ou, no meu caso, às vezes até mais intenso que o do sexo baunilha. Vale o que agradar cada um e seu(s) parceiro(s), sem julgamentos!