BDSM, Cultura e Estética do desejo, por Arthur V.

São inúmeros os momentos no nosso cotidiano na metrópole, em que nos deparamos com situações, existências e códigos novos e inusitados para o nosso universo. Porém são raros os momentos nos quais nos deparamos com códigos que despertam a nossa atenção e curiosidade para questões mais amplas e pertinentes à condição humana, já que vivemos num mundo bastante saturado por imagens sem significado.

Durante mais de vinte e três anos, frequento os múltiplos universos culturais que constituem a noite paulistana, sendo o universo underground, aquele com o qual eu tenho mais convivência.

Hora em maior ou menor grau, este universo sempre teve certa proximidade com o universo BDSM, mas confesso que por limitação minha ou mesmo por falta de oportunidade, nunca adentrei neste universo de forma mais atenciosa. Esta oportunidade se reverteu a pouco tempo atrás e então descobri novos e instigantes códigos.

Passado um primeiro contato, ocorrido dentro de festas abertas com este público e a seus simpatizantes, me deparei com uma série de interesses, fantasias e questões à respeito do tema que me levaram a pesquisar um pouco mais sobre a questão e me induziram a uma série de reflexões e posterior postulação de alguns pensamentos ainda que primários à respeito desta comunidade e seus anseios, seus diálogos e sua intenção para com o mundo.

Numa fase inicial, pertinente a qualquer aproximação verdadeira, feita com o espírito aberto, procurei contextualizar o tema e suas práticas buscando artigos científicos à respeito do assunto. Esta fase se mostrou insuficiente já que a abordagem do assunto se tornou insuficiente e incompleta. Na sequência, busquei um material geral mais amplo e profundo produzido pela própria comunidade BDSM e sua cultura, numa tentativa empática de compreender e escutar aquilo que eles tinham a dizer ao mundo. Procurei me aproximar, conversar diretamente com as pessoas envolvidas. Cheguei finalmente ao Blog do Dom Barbudo e pude, através de uma observação mais detalhada e partida da própria fonte, produzir algumas impressões à respeito de uma comunidade que me fascinou tanto.

Ao que me pareceu, grande parte do material científico visto numa primeira fase desta pesquisa, aborda as práticas e elaborações BDSM sob o ponto de vista de quem está longe. Sob a égide monolítica da normatização: NÓS, os normais e saudáveis e ELES………os paralelos…….patológicos.

Sendo assim, em boa parte da comunidade científica, toda uma imensa e rica gama de práticas e de elaboração saudável de identidades sexuais, são analisadas sob um ponto de vista clínico e diagnóstico.

Cabe aqui lembrar que algumas décadas atrás, por falta de uma devida aproximação e esclarecimento a homossexualidade era considerada doença; no início do século XX, mulheres que pretendiam votar ou usar calças eram consideradas histéricas, e toda a obra de Arte Moderna produzida nos anos 20 e 30, eram consideradas Degenerações artísticas produzidas por mentes patológicas.

Com o mesmo problema me deparei ao ler à respeito de algumas abordagens do universo BDSM, por se tratarem de abordagens que apesar de científicas, são incompletas e estigmatizantes, na medida em que não lançam luz para uma série de aspectos estéticos e subjetivos relacionados à esta prática, sendo que muitas das respostas para uma maior compreensão da cultura BDSM, encontram-se contidas neste Blog.

Em primeiro lugar, entendo que qualquer prática social, só se torna patológica e passível de diagnóstico clínico, quando envolve pulsões não compreendidas pelo próprio indivíduo que a pratica, quando gera conflito, quando é feita de forma desorganizada e desorientada, não consensual e por isso realmente imoral e perversa (no sentido pejorativo da palavra), trazendo sofrimento para a sociedade a para aquele que a pratica.

Neste sentido, condições patológicas podem ou não serem encontradas em todos os campos da atividade humana, inclusive naquelas atividades sociais ditas “normatizadas”. Patologias podem ou não serem encontradas nas relações homossexuais, heterossexuais, nas relações familiares, nas relações de coerção econômica, nas relações de trabalho, escolas, religiões….. sendo necessário uma maior contextualização destas relações para podermos ou não classificá-las como tal.

Pois bem, compreendidas as coisas desta forma, gostaria de deixar registrada, a segunda etapa deste processo deliciosamente investigativo e revelador, que foi o meu contato com o Blog do Dom Barbudo.

Em primeiro lugar percebi uma extrema e minusciosa organização e ética para com as práticas consensuais apresentadas no Blog. Alguns dos depoimentos dos envolvidos e alguns dos depoimentos do próprio Dom, mostram de forma clara, sensível e até mesmo comovente, um profundo respeito, cuidado e atenção para com aqueles envolvidos nas sessões.

Neste sentido, a figura de um Dom, pode ser compreendida como a figura que devido à sua experiência, está no papel do dirigente das práticas BDSM.

Importante lembrarmos, que o ser humano é por natureza um ser social e suas práticas e atividades, para serem realizadas de forma saudável e com plenitude, requerem certo grau de hierarquização. Sendo assim, toda, ou quase toda prática social humana, possui ou deveria possuir, o papel do dirigente ou de um Dom: as religiões, o trabalho, a política, a família e as instituições, possuem essa figura facilitadora e aproximadora, que tem a responsabilidade de conduzir as práticas de forma coesa e ética, de forma estável e com conhecimento e respeito.

A importância de um Dom neste sentido, longe de ser uma presença impositiva e destrutiva ou violenta, deve ser compreendida como a de uma figura social, que age num grau de diálogo e complementariedade à do seu subordinado.

Estes aspectos organizacionais para as práticas BDSM, aparecem descritos de forma bastante clara neste Blog.

Com relação aos depoimentos, são válidos aqui alguns comentários: para um leigo, o linguajar pode parecer num primeiro momento, bastante chulo. Mas na verdade não é! Este linguajar está contextualizado. Faz parte de uma requintada metáfora, de uma alegoria carnal. As narrativas são diversificadas e deliciosas de serem lidas. Os depoimentos são tratados como contos, crônicas, as narrativas são lúdicas.

As palavras bem escolhidas e pontuadas, em momento algum propõem uma vulgarização às práticas ou ofensa aos envolvidos. Ao contrário: elevam a prática BDSM à sublimação da erotização e dos conteúdos íntimos e individuais elaborados e intrínsecos a ela.

Com relação às imagens contidas nas narrativas, são pertinentes também alguns comentários: elas propõem algo diametralmente oposto à pornografia.

A pornografia, justamente por ser pornografia, é explícita. As imagens contidas nas narrativas deste Blog, possuem conteúdo implícito. Seu fechamento e completude, se dá no imaginário do internauta.

Elas possuem sutileza e justamente por não serem explícitas, complementam a narrativa textual de forma dialógica. Não são redundantes à narrativa textual por gerarem uma lacuna, uma elipse propositada, que dá ao internauta a liberdade individual de preenchimento.

Do ponto de vista técnico, as imagens possuem dinâmica e ritmo, utilizam a linguagem da imagem sequêncial. A tensão dos corpos aparecem em recortes bem colocados e as fotos sugerem essa tensão luxuriante e soberba através de composições hora verticais, hora diagonais e hora horizontais através das imagens das ações e dos corpos. O contraste de cores é vivo, enfatiza os planos fotográficos e suas intenções, criando um clima voluptuoso que nos traz a áura cinematográfica de filmes como Querelle, do alemão Fassbinder, que nos contemplam com a prática do Desejo como algo único e próprio da condição humana. Wim Wenders apresenta a proposta de Desejo como algo divino, mas único dos indivíduos, no seu filme Asas do Desejo (O Céu sobre Berl im).

As atmosferas voluptuosas criadas pelo ambiente do estúdio 57, parecem neste sentido remeter à Belle Époque do sec. XIX, aos cabarés e quadros do Lautrec, à estética orgânica do estilo Art Nouveau Francês ou mesmo aos quadros de Gustav Klint ou Egon Schille. Ao me deparar com estas imagens textuais, fotográficas e mentais, senti a nostalgia de ler a História em Quadrinhos vanguardista “Valentina” de Guido Crepax.

São imagens que mexem com o imaginário, com a fantasia e com a libido. Nos propõem uma auto entrega imediata na medida em que agem no campo onírico, do sonho.

Todo o conjunto, maravilhosamente bem articulado, pontuado pelo logo do Dom, que sugere e sintetiza todo o conteúdo do Blog, junto aos objetos e artefatos envolvidos nas idumentárias e práticas, encantam; nos trazem para a base de toda prática BDSM: o fetiche.

Vale aqui lembrar que a palavra fetiche, além de significar alegoria e objeto, artefato, tem sua origem na palavra Feitiço; Magia. Neste caso trata-se de Magia e auto realização dos envolvidos, realizada, presentificada.

Trata-se então de um universo Mágico/Estético.

A palavra estética por sua vez, vem do grego Aysthesis, que significa sentir. Então, quando falamos deste Blog e das práticas aqui apresentadas, estamos falando do universo sublime do sentir.

Horas: como podemos abordar de forma clínica e patológica uma prática consensual, organizada, ética, que eleva o indivíduo à sublimação através do sentir, através do auto-conhecimento, do respeito e da ética?

Ao analisar este Blog, prefiro então compreender as práticas BDSM e sua cultura como algo pertencente ao campo da estética, ao campo dos exercícios de elaboração subjetiva, individual. Prefiro entende-las como um exercício de aproximação social e sobretudo, um exercício de liberdade.

Seres humanos têm múltiplas e infinitas formas de sociabilização e de expressão de seus anseios, desejos e sexualidade, logo o universo BDSM deveria ser compreendido com um universo rico, e sobretudo encarado como um patrimônio cultural e estético no que diz respeito à sua complexidade, importância e conteúdo expressivo. É sem dúvida um universo que pode nos ensinar muito à respeito da pluralidade e diversidade humana e à respeito de nós mesmos. Estas práticas portanto merecem ser celebradas.

Blogs como o Dom e espaços como Estúdio 57 são fundamentais, na medida em que oferecem aos indivíduos subsídios seguros para que estes mesmos possam construir, exercer e crescer com suas identidades. Ao meu ver toda a diversidade humana deveria ter o direito a espaços como esse. São espaços essências para a completude sã da integridade dos indivíduos.

Me sinto realmente grato por conhecer pessoas como o Dom Barbudo, pessoas estas que estão definitivamente à frente de seu tempo.

A Humanidade necessita encarecidamente de homens sensíveis, plenos e íntegros em suas condutas, vivências e desejos. Uma sociedade, um coletivo saudável, é constituído por indivíduos capazes de exercer sua individualidade de forma ampla.

Ao contrário do que possa parecer a alguns, a diversidade não deve ser temida. Elas nos aproxima nas nossas diferentes capacidades de enxergar o mundo.

Espero sinceramente que Blogs e espaços como o Estúdio 57, sirvam para ilustrar, esclarecer e iluminar as próximas gerações para a questão da pluralidade humana. Um homem só pode ser mensurado por suas atitudes e realizações, e principalmente auto realizações.

Obrigado DOM.

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