MATÉRIA PUBLICADA NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO

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Para praticantes paulistanos de sadomasoquismo, sexo comum é coisa tenebrosa

Imitar cachorro é o fetiche do momento em locais frequentados por essa comunidade

João Perassolo

SÃO PAULO

Na madrugada de 1º de setembro, um clube de sexo só para homens na Vila Buarque, região central de São Paulo, recebeu a festa Petzone. Ao contrário do que o nome sugere, não era permitido levar um animal de estimação para a casa noturna —pelo menos não no sentido literal. A proposta da noite era juntar dominadores que gostam de ter “cães humanos” como submissos.

Por volta da 1h, dois homens musculosos vestindo apenas sunga e máscaras de couro com feições de cachorros raivosos subiram em um minipalco. Em seguida, começaram a dançar ao som do tribal house que bombava dos alto-falantes. Eles então tiraram a parte de baixo e receberam sexo oral de alguns dos frequentadores.

Em outra cena, quatro “cachorros” ficaram de quatro sobre o pequeno palco. Além das máscaras, vestiam coleiras e alças ao redor do torso. Um de cada vez, eles se ofereciam a um adestrador, que amarrava uma corrente em seus pescoços e os levava para passear, como animais de estimação, pelo bar.

O “pet play”, prática de se passar por cachorro (ou gato), é o fetiche do momento na comunidade do sadomasoquismo da cidade de São Paulo.

A “brincadeira” está inserida em um universo muito maior de jogos que opõem um parceiro dominador e um outro submisso, ambos em busca de prazer sexual.

Surras nas nádegas com chicotes de couro (“spanking”), o derramamento de cera quente de vela sobre a pele (“wax play”), a perfuração das costas com agulhas (“needle play”) e o ato de  ingerir urina (urofilia) usando máscaras desenhadas para este fim são outras práticas recorrentes.

Fetiches não se restringem à adoração de pés (podolatria) e ao uso de roupas de couro e látex muito justas —embora a realização destas fantasias ainda seja bastante popular.

Dom Barbudo —os entrevistados são identificados pelos apelidos com os quais são conhecidos no meio—, um dos mais famosos dominadores da cena gay masculina, diz sentir prazer em “ver o pavor e o pânico” dos rapazes que subjuga: “Ele [o dominado] está com medo, mas está com muito tesão em fazer aquilo para me agradar”.

No site no qual registra suas experiências em forma de diário, um contador numérico avisa que Dom Barbudo já submeteu 426 pessoas em sua masmorra particular, um apartamento voltado ao sexo, repleto de objetos como algemas e palmatórias.

“Mostrei como deve lamber botas e, quando não fazia a contento, tinha duas formas de castigo: um tapa na cara ou ajoelhar no milho”, escreve, em relação ao rapaz 425.

A sensação de ser escravizada é descrita como “orgástica, como se você estivesse recebendo um oral suculento” por Doroti Lolita, 29, uma mulher que se submete à sua “rainha” há três anos.

Lolita mantém com Queen Amy Addams uma relação não monogâmica que chama de “quase um casamento”, embora sem sexo.

De tempos em tempos, Lolita passa períodos de uma semana na casa de sua mestre, satisfazendo as vontades dela, limpando os cômodos e se passando por gato.

“Ela mia, me arranha, e tem tigelinha para comer. Consegue ter orgasmo com carinho na barriguinha”, conta a dominadora.

Assim como nesta relação, em boa parte das vezes as práticas de sadomasoquismo não envolvem sexo, embora possam levar ao orgasmo.

A realização sexual se dá pela encenação de uma fantasia, que cria uma atmosfera definida pela comunidade como “sensual” e “erótica”. A ideia é que as pessoas descubram oportunidades de prazer para além da genitália.

As sessões de sadomasoquismo foram sempre descritas para a reportagem, de maneira quase didática, como “sãs, seguras e consensuais”. Há uma combinação prévia do que pode ser feito por cada uma das partes e, durante o espancamento com chicote, por exemplo, há uma palavra de segurança que quem apanha pode pronunciar caso tenha chegado ao limite. “É exercer o poder com ética”, argumenta Dom Barbudo.

Os entrevistados falam muito em prazer e pouco em dor, como se ela não estivesse presente mesmo em práticas que resultam em sangue. No lugar da dor entram termos como risco compartilhado e técnica —o conhecimento do quanto uma ação pode machucar evitaria danos corporais ou psicológicos aos participantes.

Quando o sofrimento físico de fato é abordado, há um consenso de que os escravos o suportam por estarem imersos no desejo, que funcionaria como uma espécie de anestésico natural. O ápice do prazer é chamado de “subspace”.

O sadomasoquismo faz parte da noite paulistana desde o início dos anos 1990, como relata Maria Filomena Gregori, autora do livro “Prazeres Perigosos” (ed. Companhia das Letras, 288 págs., R$ 77,90). À época, pessoas de classe média criaram uma comunidade cujo ponto de encontro era o clube Valhala, hoje fechado.

Em 2006, o costureiro e performer Heitor Werneck fundou a festa Luxúria, provavelmente a mais conhecida do meio. Sete anos mais tarde surgiria a boate Dominatrix Augusta.

A cena paulistana é retratada pelo fotógrafo gaúcho Ale Ruaro há seis anos. Ele reuniu no livro “São Paulo S.M.” (ed. Madalena, 104 págs., R$ 120) algumas das imagens, como as que ilustram esta reportagem.

Nos últimos tempos, a divulgação para os “baunilhas” —como são chamadas as pessoas que não participam deste universo—, se dá por iniciativas como o Jantar Leather, que reúne amantes do couro para comer hambúrguer no restaurante Castro Burger, e pela ala fetichista da Parada do Orgulho LGBT, que desfilou neste ano pela segunda vez.

Nas palavras irônicas do dominador Q., a mensagem da comunidade parece ser uma só: “Sexo comum é a coisa mais tenebrosa que já vi na minha vida”.

GLOSSÁRIO

Needle play
Inserir dezenas de agulhas na pele

Blood play
Arrancar agulhas da pele de maneira bruta, gerando sangue

Pet play
Se passar por animal de estimação, como gato ou cachorro

Podolatria
Lamber pés e botas e ser pisado

Spanking
Espancamento com chicotes ou palmatórias

Urofilia
Urinar sobre um parceiro ou beber a urina

Wax play
Derramar cera quente de vela sobre o corpo

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